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A MOTOCICLETA, A ATITUDE E A AMIZADE

Texto e Fotografias: Ricardo Lugris

 
Há muitos anos, quando percorria em minha Honda XL 250 os caminhos da Serra da Mantiqueira, entre São Paulo e Minas, aprendi que a moto pode ser um instrumento de aproximação entre pessoas.

Nessa época, nos anos 80, minha paixão era embrenhar-me pelas míticas trilhas dessa serra com nomes tão estranhos quanto, Trilha do Jorge, Trilha do Caçador, Barranco e Vestibular, entre outras, cujos nomes minha memória já não guarda.















Para ter acesso a uma determinada trilha, muitas vezes éramos obrigados a cruzar terras pertencentes a pequenos agricultores que, vivendo isolados, não viam com grande simpatia a passagem desses moleques da cidade com motos coloridas e barulhentas que só serviam para perturbar o seu sossego e o de seus animais.

Sabendo disso, adotei uma política de “boa vizinhança” com esse pessoal reservado, porém sempre generoso, apesar de seus parcos recursos.

Em minha bolsa “banana”, levava sempre quatro ou cinco jogos de pilhas de diversos tamanhos.
O morador daquele lugar, sem energia elétrica e distante da chamada “civilização”, só tinha seu radinho de pilhas como contato com o mundo.

Ao chegar ao seu casebre, eu imediatamente perguntava o tipo de rádio que ele tinha e lhe entregava as pilhas correspondentes. Imaginem o valor que isso tinha para ele.
Com esse gesto, espontâneo e gratuito, ganhei o carinho e a confiança de mais de um agricultor que invariavelmente respondia na sua generosa hospitalidade com um milho cozido, uma paçoquinha ou, com uma bananinha com açúcar e canela, assada no seu rústico fogão. Momentos de pausa e felicidade entre poeira e barro.

Iguarias de extrema simplicidade, cujo sabor permanece no meu paladar ao longo de todos estes anos

Tenho na memória esses momentos de sincera troca de apreço e respeito que me permitiam cruzar com minha XL vermelha tantas trilhas ainda não percorridas por outros “treieiros”.

Conto esta história para chegar ao ponto principal deste texto que é a propriedade da motocicleta como instrumento de promoção e desenvolvimento de relacionamentos e de boa vontade. Sempre que a atitude for conveniente e positiva, obviamente.

Recentemente, em um curto espaço de tempo, recebi aqui na França onde moro, a visita de dois grandes motociclistas brasileiros e figuras humanas muito especiais: Marcelo Vorcaro e Cícero Paes ( com suas esposas).

Em ambos casos, não nos conhecíamos pessoalmente.
Vínhamos há algum tempo trocando mensagens e mails de apreço e incentivo sobre nossas respectivas jornadas em duas rodas e eventualmente não tínhamos quase nada em comum, exceto a paixão pela viagem de motocicleta.

Nem por isso deixamos de ter, nessa oportunidade, várias horas de deliciosa conversa onde a despedida se fez emocional e difícil, como quando se despede a um parceiro de toda a vida.

Assim tem sido a toada de minha existência, onde este veículo de duas rodas presenteou-me a muitos dos que considero hoje como meus melhores amigos e sempre graças ao fato de que nos cruzamos um dia sobre a sela de nossas motos.















Uma vez, ao chegar ao Porto de Ancona, na Itália, vejo um casal ao lado de uma GSA igual à minha.
Vejo que a placa é italiana e, ao retirar o capacete, digo:

- Bela moto!
... A resposta veio imediata:
- A sua não é má...

Essa troca de palavras em tom de brincadeira deu início a uma amizade entre Claudio e eu, a ponto de já termos feito quatro viagens juntos e ele ter vindo ao Brasil passar suas férias em nossa casa.
Ele é hoje um irmão italiano para mim e nossas esposas se tornaram boas amigas.
Esse exemplo pode ser enriquecido de vários outros e o mais interessante é que Cláudio é contabilista e eu sou vendedor. Ele, italiano e eu, brasileiro.

O que teríamos em comum se não fosse a moto? Provavelmente nada.

Quando é que um motorista se deteria para conversar com o dono de outro carro?
Você imagina passar com sua moto por um grupo de motociclistas abastecendo e não fazer um stop para cumprimentá-los?

Hoje as amizades que fiz com gente que viaja de motocicleta são eternas e verdadeiras

Há aqueles, que por força de caráter e temperamento prefiro não convidar para vir comigo para longas viagens, apesar da amizade que nos une. De qualquer forma, isso não invalida a sincera apreciação que temos uns pelos outros e o tema central de nossas conversas será sempre a motocicleta.

Há outros amigos como Augusto Kempa, de Santana do Livramento, RS.

Com ele, fiz minha primeira viagem na garupa de sua moto. Eu era nessa época, com 15 anos de idade, um verdadeiro “saco de batatas”.

Que grande aventura me proporcionou esse amigo ao longo dos 150 quilômetros onde consegui até perder a viseira do velho capacete emprestado de um conhecido.

Hoje, Augusto é um moto viajante como eu e mantivemos um fraterno e constante contato ao longo de nossas vidas.





Assim, seja por onde for, estejamos onde estivermos, é importante manter o espírito e o coração aberto para receber gestos de generosidade e apreço de gente que não conhecemos até então mas que pode ter eventualmente muito mais em comum com cada um de nós do que nossos próprios irmãos de sangue.

Exceto se nossos irmãos de sangue também utilizarem uma motocicleta para ir ver o que acontece pelo mundo.

Aí sim, a situação é ideal.

 
 
 
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Comentários (14)

12/12/2011 23:27:16
LUIZ F TEDESCHI OLIVEIRA
Como sempre, uma otima narrativa, com emocao. Apesar da falta de gentileza entre motociclistas no BR, acho que nao ha falta de solidariedade, qdo necessario. Contrariamente as lendas, o brasileiro e reservado e seco, por vezes mal educado... De qq modo, entre motociclistas sempre aparece oportunidade p travar conhecimento.
 
12/12/2011 13:52:35
RICARDO LUGRIS
Meu caro Felipe,
Obrigado por teus comentários. O veículo é importante mas a atitude é fundamental. Lembro que foi você que me apresentou ao Eduardo Wermelinger, permitindo que possamos fazer esta aprceria no Rotaway.
Recentemente, com tristeza rodei no Brasil e percebi que há muito menos solidariedade entre motociclistas do que na Europa.
Temos muito para melhorar.
Abraço forte,
RL
 
12/12/2011 13:09:47
FELIPE MIRANDA
Não consigo entender como o motociclismo aproxima as pessoas de bem. Temos em comum "apenas" um veículo de duas rodas. Posso dizer que estou engatinhando comparando com a vasta experiência que vocês tem e nesse pouco tempo construi sinceras e fortes amizades. Não entendo o porquê de tanto benefício. O certo é que é um caminho sem volta. Fico feliz com o encontro dos motociclistas brasileiros na Europa. Tenho certeza que irão guardar para sempre esse momento no cantinho das boas recordações da vida. Um dia nos conheceremos pessoalmente.
Um forte abraço.

Felipe Miranda
 
12/12/2011 09:28:06
CICERO LIMA
Muito legal seu relato Ricardo, saber se aproximar da pessoas com respeito e educação abrem portas. Seja nas trilhas de Minas ou no Leste Europeu o povo entende quando mostramos respeito pelos hábitos e costumes. Gentilezas que são pequenas para nós podem ser de grande valor. Seu relato é uma experiência importante que se encaixa em outras situações do cotidiano com ou sem moto.
 
12/12/2011 09:19:43
RICARDO PESCE
Emocionante! Como um dia também já fui motoqueiro sei muito bem o que isto significa. Espero que um dia eu volte a ter minha moto. Abraços carinhosos.
 
12/12/2011 09:13:56
BRANCO UBERABA MG
Oi Ricardo, dos 52 anos que tenho, 37 foram praticamente sobre duas rodas e entendo perfeitamente o dom da amizade que nós temos.
Um grande abraço.
 
15/11/2011 07:13:17
FRANCISCO OLIVEIRA
Prezado Lugris,

Estou simplesmente emocionado com o texto...colocou em palavras tudo que penso sobre amizade e motociclismo.

Grande abraço !
 
22/10/2011 22:22:35
JOSE CARLOS
Que maravilha!! Fiz muitas e sinceras amizades através da motocicleta.
 
9/9/2011 19:04:45
LEONARDO CALVO
Nossa que história em!!! Muito bom ler e sentir a emoção desses momentos que somente quem viveu sabe o que é de verdade. Parabéns!!!
www.fuidemoto.com
 
8/9/2011 11:57:06
GUILHERME GONZÁLES
Alô Ricardo, estou acessando pela primeira vez o Rotaway e lendo teu artigo, fiquei bastante impressionado com a maneira com que descreves e relatas as tuas experiência em viagens. Eu como tu, tb. sou gaúcho, de POARS e desde quando piá, assisti o filme Easy Rider me apaixonei pelos "motociclos" e pelas possibilidades que eles nos proporcionam de fazer parte dos cenários pelos quais estamos inseridos, porém, só fui adquirir a minha primeira moto já com 50 anos, mas assim que pude, fiz minha primeira viagem para Machu Pichu . E como dissestes em uma de tuas resenhas, quando chegamos em casa de uma longa viagem, apesar da saudade do pago, maquinalmente já pegamos o mapa para planejarmos a próxima. Este ano, em novembro me vou ao Ushuaia. Foi um prazer conhecê-lo. Boas estradas.
Guilherme.
 
31/8/2011 19:53:20
LUCAS AMORIM
Bem interessante seus post!
 
25/8/2011 04:48:08
MARCELO VORCARO
Tudo bem Ricardo!!!!
Nesta viagem para Europa,site, euromototour.blogspot.com, rodando sozinho por cerca de 10.000Km, tive a oportunidade de interagir com motociclistas não só de lá, como do leste europeu, russos, ucranianos , etc,etc. Como brasileiro, era uma curiosidade para todos , que queriam saber como cheguei de moto do outro lado do atlântico.
Senti que a America do Sul, é um sonho de consumo para eles, que imaginam maravilhas de um tour de moto por nosso continente. Levei adesivos da bandeira do Brasil e da logo euromototour , que distribui a todos que encontrava. Logo me abriam um sorriso, pela gentileza no trato e pelo espírito que temos por nossa brasilidade. Voce, Ricardo, nos recebeu com simpatia e atenção, saindo de seu conforto, debaixo de chuva, para "aquele" chopp na praça de la Bastille. Sabe porque todos te admiram? Por vc ser agregador, desprovido de vaidade e soberba, que trata a todos de igual pra igual, passando sua experiência incrível e única de motoviajante com muitos anos de estrada, e hoje previlegiado por morar em um continente, onde viajar de moto é um prazer indescritível.
Conte comigo, e quando quiser fazer a interoceânica,até machu Picchu, terei o prazer de fazê-la de novo pelo prazer de sua companhia.
Um abraço, amigo, e a família manda lembranças!!!
 
24/8/2011 15:20:40
ALFONSO LUGRIS
Hola Ricardo:Como siempre orgulloso, me recreo leyendo tu reportaje que tan bién retrata la amistad que conquistais en vuestros viajes sobre esas fantásticas dos ruedas!!! FELICITACIONES!!!
 
23/8/2011 09:59:09
CICERO PAES
Ricardo: Como cito no relato da recente viagem à Europa - www.ciceropaes.com.br/viagem_europa2011.html -
quanto tive a oportunidade de conhecê-lo (e Angela) ao vivo e a cores, os motociclistas parecem se conhecer há muito tempo. A amizade nesse meio, sem dúvida, é algo fantástico.
Grande abraço
 

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