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POR QUE VIAJAR?

 
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Quando eu era adolescente, vi uma fotografia de Mário de Andrade sobre os trilhos da estrada de ferro Madeira-Mamoré - também conhecida como a “Ferrovia do Diabo”. Sua presença foi registrada durante a construção da obra, em plena selva amazônica, no início do século XX.

Um empreendimento histórico que ceifou a vida de 6 mil trabalhadores, vitimados por ataques de índios, afogamentos, picadas de cobra e doenças diversas, como malária, febre amarela, beribéri e tuberculose.

Achei curioso aquele fato. Por que um escritor da Paulicéia estaria tão longe de casa, em local tão ermo? Quantos dias ou semanas teria ele gastado para chegar ali?
Por qual razão?



Sua arte dependia disso! Estar ali

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Naquela época, eu mal sabia que Mário de Andrade não era uma pessoa comum. Seus livros e estórias nasciam do contato profundo com o Brasil Escondido. Ele havia decidido mergulhar nas entranhas de seu país e de seu povo. Sua arte dependia disso! Estar ali, no meio do nada, era uma ginástica aparentemente corriqueira para ele. Depois soube que foi por aquelas paragens amazônicas que encontrou inspiração e conteúdo para sua maior obra: Macunaíma.

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À medida que fui crescendo, ganhando maturidade e me apaixonando cada vez mais por literatura, passei a perceber que os chamados escritores de primeira grandeza possuíam, via de regra, essa característica. Escreviam sobre locais, pessoas e sentimentos que conheciam de perto. Não apenas dominavam as letras, mas sabiam se colocar como atores e aprendizes de uma realidade social que poucos imaginavam existir. Essa característica não pertencia apenas a Mário de Andrade, mas a muitos outros escritores que marcaram nossos tempos: Gabriel Garcia Márquez, Neruda, Sábatto, Borges, Graciliano Ramos, Guimarães Rosa, dentre outros. Talvez fosse o exercício de se embrenhar pelas terras esquecidas e pela história de seus países o grande diferencial que os transformou em homens inesquecíveis para a humanidade. Sabiam bem do que falavam. As emoções e os cenários de suas estórias estavam gravados (também) em suas próprias peles.

Os grandes homens e poetas são, em sua imensa maioria, eternos viajantes

Não viajantes comuns, mas exploradores. Uma verdadeira viagem tem que ter essa conotação: explorar, superar limites, desejar o novo. Buda, Cristo, Francisco de Assis, Gandhi e Paulo de Tarso eram viajantes solitários, exploradores de almas, e gastaram muita sola de calçado na caminhada da iluminação.


VIAJAR, sob todos esses aspectos, tornou-se essencial para mim, para minha própria formação intelectual e espiritual. Foi o meio que utilizei para amadurecer e fortalecer meu espírito e para experimentar um tipo de felicidade que ainda não conhecia. De falar com propriedade das coisas que vi, que senti e que presenciei. Creio que o verdadeiro encontro interior para alguns, como eu, precisa passar pela experiência do ir para longe e do voltar feliz para casa. Do desvendar o que existe além da montanha e do rio. Do experimentar diferentes sons, odores e temperaturas. Do contemplar o sol, a chuva ou as estrelas. Do conhecer pessoas simples e do aprender com elas.

Pilotar uma moto por longos períodos de tempo gera um estado mental diferenciado

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Eu, após viajar muito de ônibus, de avião e automóvel, só consegui experimentar um contato profundo comigo mesmo depois que passei a viajar de motocicleta. Sabe-se lá o porquê, mas sempre tentei me justificar acreditando que pilotar uma moto por longos períodos de tempo gera um estado mental diferenciado. O corpo, em contato direto com o ambiente, parece estar sob as carícias da natureza. A mente relaxa, mas os reflexos ficam acesos e prontos para dar comandos rápidos aos membros. Em outra oportunidade cheguei a comparar esse estado psíquico ao que os antigos monges taoístas chamavam de “encontrar o silêncio no meio da tempestade”. É uma espécie de inebriamento que só acontece quando nos deslocamos em velocidade moderada. Quando se acelera com exagero as emoções são diferentes, decorrem da adrenalina, mas não se atinge essa condição espiritual.

Contudo, não advogo a tese de que a motocicleta é o melhor veículo para todos. Trata-se de uma constatação pessoal. Sei de outros viajantes que vivenciaram emoções idênticas dentro de um jipe, de um veleiro, sobre uma bicicleta ou simplesmente caminhando ou mochilando pelas estradas do mundo.

Quem viaja está sempre construindo algo diferente para suas vidas. Está abrindo seu coração para novos sentimentos e amizades. Está descerrando a mente para novos conhecimentos, os olhos para novos cenários e horizontes. Enfim, compartilhando sua alma com o planeta que o acolhe.

Por: Flávio Faria (Brasília – DF)
 
 
 
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Comentários (27)

23/9/2013 07:49:27
MÔNICA NÓBREGA
Texto excelente, rico e fácil, ao mesmo tempo. Gostaria de vivenciar outras experiências através de suas palavras, Flávio
 
20/11/2011 17:15:32
CARLOS IVO
Caro Amigo Flávio, só hoje vi este texto maravilhoso e muito bem escrito, traduzindo sentimentos que passamos e muito difíceis de se expressar. Disse tudo que sentimos durante estas viagens de uma maneira muito clara. Parabéns, gostei muito.
 
17/4/2011 09:09:02
HOMERO LARA
Parabéns Flávio.
Soube com maestria externar sentimentos mais profundos que são os mesmos percebemos e não sabemos exteriorizá-los.
Viajar é liberar a alma, é usar e usufruir intensamente todos os nossos sentidos.
 
8/4/2011 18:29:48
AYRES DE OLIVEIRA
O texto, além de bonito e rico em cultura, foi muito bem escrito. Eu acho que jogar parte de suas andanças num livro, com a sua cultura e facilidade de expressão, poderia se tornar em obra disputada nas livrarias. Você escreve muito bem e é pena que isso não tenha acontecido, ainda. Parabéns. Tio Ayres
 
7/4/2011 23:59:04
PATRICIA DA COSTA ROQUETTE VAZ
Flávio, todas as emoções que descreve ao viajar de moto sentimos também, conhecer algo novo,integrar a natureza, renovar o espirito, entre outras e a mais puro verdade e ainda descobrimos que a cada viagem a nossa relação se soporífica mais. Parabéns pelo blog.

PAty & Cesar
 
5/4/2011 21:45:16
AIRTON DE FREITAS GONÇALVES DA SILVA
parabens pelo texto que nos escreveu,vc conseguiu mostrar com realidade o que passa na cabeça de um motociclista no decorrer de uma viagen,..................è isso aì Flavio !!!!
 
5/4/2011 20:12:18
MARCELO ARAUJO
Simplesmente simples e fantastico....parabens e obrigado por dividir conosco seu seu texto.

Abraco...
 
5/4/2011 17:51:01
CARLOS PEREIRA NETO
Prezado Flávio:
O seu texto retrata exatamente o meu sentimento "encarando" os estradões de nosso Brasil.
Para nós, motociclistas estradeiros, não importa o destino; o importante é ir... e isso você expressou com maestria e beleza.
Parabéns!
Muitas estradas para você!
 
5/4/2011 15:26:09
ADRIANA NISHIMURA
Parabéns, Flávio! O mais engraçado é que já tinha lido esse texto no seu site, mas mesmo assim ao reler senti aquela sensação gostosa e prazerosa de estar lendo um ótimo texto pela primeira vez! Maravilha de trabalho.
 
5/4/2011 15:12:53
LUCI M. DE ALBUQUERQUE
Amigo Flávio,

Deleito-me ao degustar seus relatos bem construídos. Como não sou ousada o suficiente para tamanhas aventuras, fico cá, no meu birô, aguardando suas notícias. Assim, minha alma também viajará para além da montanha e do rio.
 
5/4/2011 09:53:09
JOSIANE
Flávio,

Quanto tempo, mas não deixa se ser o FLAVIO com sábias palavras e perfeito no que faz.

Bj

Josiane
 
5/4/2011 09:18:10
OTAVIO ARAUJO GUGU
Show de texto, nem sei como comentar... gostaria de conhecer o Flávio depois do que li. Muito bom, exatamente como penso, até parece que escrevemos em parceria.

Eduardo, onde vc encontra essas personagens tão especiais que tão bem ilustram e elevam seu site? Sei do amor que vc tem pelo Rotaway.

Flávio, um dia espero encontrá-lo para um belo papo sobre vida, viagens, literatura e tudo mais que vier à baila.

Acabo de chegar de uma viagem solo de 14.000 km e voltei renovado, alegre, cansado, mas disposto. Vou repassar o link de seu texto aos meus amigos motociclistas ou não, certeza de que irão apreciar sua forma e palavras. Parabéns!!!
Aceitem meu melhor abraço. Otavio Araujo – Gugu Taubaté/SP
 
5/4/2011 08:56:48
WASHINGTON LUIZ DA SILVA GOMES
Flávio, como poderia imaginar que após 30 anos lhe encontraria pela esplanada, músico e compositor como eu, ativo na sua arte. Quando criança, Emílio, seu irmão e meu parceiro, sempre falava do Flávio Faria; meu irmão compositor vai cantar no Concerto Cabeças. A música e poesia lhe trouxe o desejo pela pesquisa e envolvimento com a literatura, consequente paixão pelas viagens, que nos envolve com os post. Grande abraço meu irmão e parabéns.
 
5/4/2011 08:20:28
ALINE FERREIRA
Navegar é preciso, já dizia o poeta!!!
Querido amigo, parabéns pelo seu texto, de leitura gostosa, que tão bem descreve as maravilhas de viajar, empreender, conhecer o novo e "o velho" que há dentro de nós!
Bons ventos para você!
Aline
 
5/4/2011 08:05:14
JULIANA
Primo querido, adorei o texto. Sábias palavras e descrições deliciosas de ler! Esse espaço de silêncio que você encontra nas viagens de moto deve ser, realmente, transformador.
Parabéns.
Bjs
Juliana
 
5/4/2011 08:00:01
AMÂNDIO ÉFREM
"Na vida, o importante não
é ser, ter ou parecer.
O importante é fazer, construir,
desenvolver e amar tudo que faz".
 
5/4/2011 00:41:47
EDSON LUIZ SIONEK
parabéns pelo texto e digo;
Viajar de moto é algo maravilhoso, eu sinto uma sensação de envolvimento total com a natureza, é algo que não consigo descrever, sei que a sensação é muito gostosa. Minhas fantasias correm rapidamente, a velocidade da imaginação e pensamento vai percorrendo meu cérebro aparece interrogações e respostas. Fantástico.
O viajante de moto é diferente de todos os outros viajantes.
Observa atento a tudo que se passa, não pode perder o foco, e viaja...
Quando você estaciona sua moto em algum lugar as pessoas olham com curiosidade, admiração e alguns com resignação.
Primeiro as crianças se aproximam e fitam sem nada perguntar, apenas fitam. Depois chegam aquelas que também são motoqueiros e conversam, logo a seguir aparecem aqueles que pretendem fazer o que você está fazendo mais ainda não decidiram. Outro a distância apenas fita com desdenho.
Na verdade a moto abre portas, caminhos, cada um a sua maneira se aproxima e quer saber de onde você é, qual é a autonomia da moto, velocidade, potência, quanto custa, pra onde você viaja etc. etc.
A grande sacada de tudo é que você faz novos amigos, é isso o que interessa.

"O viajante de moto sente o cheiro do mato, escuta o barulho do vento, a brisa do mar, o calor e a chuva, sente na pele a fuligem, o cheiro da gasolina e do óleo, o ronco do motor, o giro, a trepidação e a velocidade da vida"


Edson Sionek - Curitiba - Pr
 
4/4/2011 20:55:06
VINICIUS MANARTE GUARAPARI, ES
Belo texto e os dois últimos parágrafos se destacaram na minha opinião. Estou numa fase e não sei o tempo que vai durar, mas tenho até vergonha ou fico meio sem graça de falar que vou viajar de carro ou outro meio que não seja a motocicleta. Desculpem o radicalismo, mas é isso ai...Um abraço a todos e maravilhosas viagens de moto. Fiquem com Deus.
 
4/4/2011 19:27:37
RAQUEL TRINDADE
A qualidade deste texto não deixa nenhuma duvida sobre tua habilidade em escrever.Parabéns!!
Gosto deste site por tudo.Eu escolhi o Rotaway para ler e escrever, e me causa muita admiração o fato de se ter um unico tema e ainda assim, ser possivel dissertar de variadas formas e com tanta qualidade. Todo o pensamento aqui registrado converge para a mesma percepção, uma sensação de transcendencia e/ou meditação ao pilotar e ao viajar de moto; e isto pode ser dito de muitas formas.Parabéns pelo texto.
 
4/4/2011 19:03:43
MAIZENA
Como filosofou o meu amigo Guisso, onde viajamos juntos 15.000 agora em janeiro, dou meu depoimento=" Mesmo viajando junto , nos tornamos só e dono de nossos atos, onde que reavaliamos nossas condutas, o nosso eu, se transforma em duas partes o corpo e a mente, muitas vezes chegamos a conversar corpo e mente, imbuidos de um só desejo, o de liberdade e o de realização, principalmente quando do retorno para os braço de nossa amada.
Fui Maizena.
 
4/4/2011 18:22:40
FALCÃO NEGRO
VALEU ISSO É UMA GRANDE VERDADE
 
4/4/2011 18:20:51
SERGINHO SILVA RIO DO SUL, S.C
Flavio.
Depois deste texto...dizer o que ?
É isso aí !
 
4/4/2011 16:53:20
GAITERO
Grande Flávio...
se tem um cara que sabe o que é viajar, esse é você, "Farora". Tanto por sua grande experiencia pelas BRs e Rutas da America do Sul, quanto por sua sencibilidade e talento literário. Parabens pelo texto inspirado e inspirador.
Muita gente viaja sem saber por que... Outros não viajam por que não sabem... Alguns como você, meu irmão, foram aos confins da Terra para poderem nos ensinar esses "porquês" que estão além do horizonte de nossa percepção, depois da curva da estrada...
abraço,
Gaitero.
 
4/4/2011 16:26:19
JOSÉ CARLOS
Flavio Vc realmente sabe das coisas, pois, O Verdadeiro encontro interior, é um fenômeno que realmente acontece simplesmente a cada boa, distante e por isso prazerosa viagem, onde o tempo só vem somar para dar a oportunidade de grandes reflexões sobre a vida.
Muito bom.
 
4/4/2011 16:23:13
ALBERTO RIBEIRAO PRETO
SEI BEM A SENSAÇÃO DE QUE VC ESTA FALANDO, POIS VIAJO CONSTANTEMENTE E LONGAMENTE DE MOTORCICLETA, FORAM 70.000 KM NOS ULTIMOS DOIS ANOS, POR VARIAS VEZES ME PEGO EM PROFUNDA MEDITAÇÃO QUE DEVE TER DURADO ALGUMAS HORAS DE IDEIAS MARAVILHOSAS, QUE EU JAMAIS AS TERIA UM ESTADO NORMAL DE CONSCIENCIA, LEVO TAMANHO SUSTO JA QUE NAO ME LEMBRO DE TER PILOTADO A MOTORCICLETA POR TANTO TEMPO, MAS ESTOU ALI BEM, EM CIMA DA MOTO, TUDO EM ORDEM, A CALMA DA ESTRADA E A MINHA PAZ E TRANQUILIDADE, MAS SEMPRE EM ESTADO DE ALERTA......
 
4/4/2011 16:05:55
SÉRGIO PITAKI
Caro Flávio Faria, obrigado pelo texto. Sou poeta, ou pelo menos estou tentando há muitos anos e literatura é um dos meus pratos prediletos. Publiquei algumas poesias e fiz dois pequenos livros que me deram muito prazer. Teus argumentos iniciais culminaram com uma conclusão brilhante: a que chegamos a um estado mental diferenciado quando pilotamos nossas motos por um longo tempo. No último mes de janeiro atravessei o Atacama sozinho e a sensação foi indescritível. Prazerosa. Completa. Um estado mental realmente diferenciado, um quase nirvana! Parabéns.
 
4/4/2011 16:00:43
LUIS GUISSO
Considero difícil explicar as razões porque viajo e vi nesse texto (muito bem redigido e de leitura gostosa) pensamentos que uso para mim, especialmente que o "verdadeiro encontro interior (...) precisa passar pela experiência do ir para longe e do voltar feliz para casa". Ótimo, Flávio!
 

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