Rotas

DE LISBOA À GUINÉ BISSAU

 
Vou à Guine!

Vou à Guiné! O Carlos Azevedo convidou-me para integrar um projeto dele, o “Por Todo o Mundo”. O Carlos inventou uma boa desculpa para vadiar: quer percorrer de moto todas as latitudes habitadas. O plano dele é fazer do Cabo Norte a Lisboa, de Lisboa à Guiné e depois recomeçar à latitude da Guiné, mas na América da Sul e ir até à Terra do Fogo. Como dificilmente conseguiria organizar a vida pessoal e profissional para fazer a viagem de uma só vez, assumiu isso e funcionará por etapas. Investigou os transportes marítimos e a história dos Carnet’s (os passaportes para veículo indispensáveis em certos países). Há pouco tempo, o Enrique (o espanhol a quem chamamos no Nomad’s “o cônsul galego”) deu-lhe uma dica boa – a Grimaldi tem uns cargueiros com rampa de embarque que conseguem levar passageiros e veículos ao longo da costa africana. Estamos à espera da confirmação de lugar num desses barcos para embarcar até Dakar – depois descemos à Guiné e voltamos para cima, de volta a casa. O Carlos (R1100GS) convidou-me a mim, ao Teles (R1150GS) e ao Miguel Casimiro (XLV1000). Se me restavam dúvidas quanto à moto a levar, dissipei-as. Vou ter de levar a GS, senão vou numa brutal inferioridade de potência (e de velocidade de cruzeiro!). De qualquer forma, prevê-se que a maioria do trajeto seja por estrada pavimentada. Desta vez não há Erg’s para atravessar e espero safar-me com a GS, mesmo configurada para viajar em autonomia. Pelo sim pelo não, levo a roda grande (21”)à frente. Estou habituado ao ônus que ela traz em estrada (menos manobrabilidade e menos estabilidade em alta velocidade) e os ganhos em TT são consideráveis. Estamos em cima do acontecimento, há quem tenha que gastar férias em excesso até ao fim de Abril e há quem não tenha férias que cheguem mas vai ter de inventá-las. A data concreta para irmos e voltarmos continua dependente da confirmação do barco que está difícil de obter. Juntamo-nos duas vezes mas foi improdutivo – comemos chouriços assados, bebemos uns canecos, contamos anedotas e rimo-nos um bocado com a perspectiva de aventuras fantásticas e com a certeza que uma preparação tão incipiente vai certamente rechear a viagem de imprevistos irresolúveis!

O mais que conseguimos avançar é na definição dos países a atravessar - também não é difícil :-). Feita essa definição, o Teles encarregou-se de ir às embaixadas pedir os vistos para todos. O Carlos está a preparar um plano alternativo. Se não houver barco da Grimaldi, vamos por terra e regressamos de Bissau por barco/avião. A chatice é que se não for o barco da Grimaldi, as motos não podem vir a granel e terão de ser contentorizadas... Continuamos à espera da confirmação da Grimaldi mas faz-se tarde. Meio a brincar já dizemos que vamos nem que seja indo e voltando por terra (mas eu sei que não tenho tempo que chegue). Entretanto levamos o golpe de misericórdia! O barco da Grimaldi está cheio de legionários que vão render as guarnições que França tem na África Ocidental. Nada feito. Agora há que ser rápido. O Carlos, inexcedível como sempre, deu gás à coisa. Conseguiu investigar o que é preciso para re-exportar as motos por contentor a partir de Bissau e passa a ser esse o plano definitivo. Fecham-se os planos de férias – informam-se os chefes e as famílias e eu, que vou ter de regressar de avião e peremptoriamente a três de Maio tenho de estar a bulir, compro o bilhete de regresso.

A sorte está lançada! Tenho muita coisa para preparar na moto – e falta muito pouco tempo. Valeu-me o meu amigo Miguel Amorim – tratou de tirar as tripas a um catalisador velho que tinha lá na garagem, reparou-me a projeção do carter que já se tinha desintegrado a que tempos, reforçou-me a aranha da frente numa zona que tinha partido, ensaiou-me o transporte do combustível extra que vamos precisar entre o Barbas e Nouakshott... A semana anterior é um frenesi, tenho que aviar as receitas dos medicamentos, levar a vacina da febre amarela que já caducou, comprar um tal cartão de crédito que dá direito a seguro de viagem, ir levantar o carnet, ir carimbá-lo à Alfândega em Lisboa, preparar cópias dos documentos e as famosas “fiches” para os controles policiais. E preparar profissionalmente a minha ausência: fico sempre com a sensação que isto das férias não compensa – trabalha-se demais no antes e no depois. O André Espenica mandou-nos mapas, uma lista de waypoints e links para informação sobre o Senegal. Tenho que imprimir isso. Decidi não levar o PDA, é menos uma coisa para me chatear.

























16 de abril

Diário, dia 01. Lisboa - Asilah (Marrocos)

Na véspera foi a noitada da ordem. O meu amigo Rui Gomes deu-me uma ajuda preciosa, no que já constitui uma tradição impecável nas noitadas antes das viagens grandes. De modo que às 8 lá estava na área de serviço do Fogueteiro, onde tínhamos combinado o primeiro encontro, nós os que saímos de Lisboa. Tínhamos à despedida o Luís Lourenço, o Nuno César, o Luís Carlos e o Carlos Cordeiro com o filho e que nos escoltou com a sua Pan European até Alcácer onde nos juntamos com o Teles. Mas isso foi só às 10h00, que o Miguel Casimiro estava um bocadinho atrasado e esqueceu-se do carnet em casa J. A hora de saída até nem foi má, considerando que ainda anteontem às 9 da noite o Casimiro dizia “Tenho que ir fazer as malas” querendo com fazer significar a manufatura dos próprios recipientes!
Na auto-estrada o Casimiro ignorou a saída para Beja e nós ignoramos a ele e o instruímos por telefone para se juntar a nós em Tarifa. Assim aconteceu, sem mais histórias, por volta das cinco e meia da tarde. Antes de sair da Comunidade tínhamos que carimbar o famoso Carnet ATA, o documento que permite re-exportação da moto quando voltar de Bissau no barco. Confirmaram-nos no porto de Tarifa que isso se fazia ali, de maneira que compramos bilhete para o ferry rápido das 20 e fomos para as tapas depois de um bocado de conversa com uns conhecidos de Alenquer que lá encontrei . Às sete e meia tivemos uma surpresa desagradável – afinal o Carnet não é carimbável em Tarifa. Lá resolvemos o reembolso do bilhete do ferry e fomos para Algeciras. Aí sim, carimbamos o carnet num ápice, compramos bilhetes para um barco sem sequer especificar para onde (vá lá que não fomos parar a Ceuta!) e no meio desta aceleração vi uma GS cinza com uma top case familiar. Era a moto do Gonçalo Mata, um amigo de quem já não ouvia há uns tempos e que ia para Marrocos por Ceuta na companhia de uma 650 GS! Despedi-me com pena e ainda apanhamos o barco das 21H00 para Tanger. Demorou foi séculos a zarpar e só atracou em África à meia noite e meia. As formalidades na fronteira de Tanger demoraram. Toda a gente sabe o que é o Carnet ATA mas nunca mais estava tratado. Depois ainda nos pediram para preencher também o papel verde da importação temporária. O que é fato é que com as duas coisas vou mais descansado. Este ano a moto do Teles não fica em Marrocos, caraças! Só deixamos Tanger às duas da manhã, depois de termos inaugurado “o bolo”: decidimos viajar em regime comunista. Trocamos todos a mesma quantidade de dirhams e qualquer despesa será paga indiscriminadamente por qualquer um de nós. Se todos trocarmos a mesma quantidade de divisas, todo o dinheiro estrangeiro pertence em partes iguais ao coletivo. Simplificou muito os abastecimentos, as contas de refeições e alojamentos, tudo! Viva o comunismo! Avançamos noite dentro até Asilah onde alugamos um apartamento numa espécie de motel/parque de campismo. Dormimos que nem calhaus.














17 de abril

Diario, dia 02. Asilah - Agadir

Aviamos a auto-estrada até Setat.

Como tinha o saco de depósito fui pagando as postagens de todos e o frete despachou-se rápido. A GS canta que nem um relógio a 130. A diferença de conforto para a KTM com que fiz o mesmo trajeto o ano passado é notória. Por vezes esticamos mais um bocadinho, mas a auto-estrada em Marrocos continua mal vedada e não convém baixar a guarda. A Marrakesh chegamos eram umas quatro da tarde. Decidimos cometer a heresia de comer Mc Donald’s na terra das tagines para avançar o mais possível para sul.

Marcamos Agadir como objetivo do dia e chegamos lá já depois do pôr do sol. Encontramos um motel jeitoso e fomos jantar bem, à marginal, ao Chez Mimi. Arrefecemos na esplanada e voltamos a bater o dente para o hotel. Amanhã há o Sahara Ocidental para começar a descascar!


18 de abril

Diário, dia 03. Agadir - Boujdour

A manhã esteve chocha – a luz esquisita, nuvens bem altas e uma neblina rasteira
Almoçamos “atum” à beira da mega estrada enquanto refletíamos na estupidez que foi fazer a estrada até Tarfaya de noite no ano passado. Está muito vento e as motos vão permanentemente inclinadas alguns 10º. Se o vento de Leste não mudar, entretanto, acho que os pneus vão ficar mesmo assimétricos
Ao longo do dia vou ciclicamente lutando com o vento com o pescoço e com os braços. Acho uma posição mais confortável que resulta por meia hora e depois tenho que procurar outra, que o alívio dura pouco.

Lá demos à costa no Bojador, já guiados pelo respectivo farol. O hotel escolhido não é grande espingarda (e já estou a ser simpático), mas dormi bem depois de ter jantado camelo a ouvir o Kenny Rogers. Amanhã ficamos de sair cedo – na casa de banho não me demoro de certeza :-)














19 de abril

Diário, dia 04. Bojador – algures a sul de Nouahdibou (Mauritania)

Alvorada às seis!
Ninguém trouxe relógio, mas vamos fazendo a média dos relógios das motos, cada uma no seu fuso horário. Parece que às 08h30 estávamos a rolar com o pequeno almoço tomado na pastelaria ao lado do Titanic. Decidimos só almoçar na fronteira mauritana! O Sahara pareceu-me hoje mais bonito, a luz abriu um bocadinho, a temperatura perfeita! Passamos o desvio para Dakhla, prestámos os nossos respeitos ao monumento do Quim no trópico de Cancêr (23º27’) e finalmente atingimos o Barbas, a última estação de serviço/hotel/fábrica de conservas antes de Nouakshott. Atestamos o que há para atestar.Eu levo 10 litros extra (além dos 30 da Adventure) em duas latas de diluente dentro das malas.

O Teles leva um jerrycan de 20 litros no lugar do banco do pendura. O Miguel artilhou dois jerrys de 10 litros cada atrás das costas. Enquanto isso, o Carlos Azevedo fuma um cigarro, com o ar divertido de quem tem um depósito de 43 litros. As motos ficam é todas igualmente pesadas como o cacete!
A fronteira marroquina fez-se nas calmas, e temos autorização para avançar para o campo de minas. A terra de ninguém continua com o mesmo aspecto lunar, desolador e estranho. O track que temos no GPS, e o único que nos permite atravessar aquilo em segurança, está desatualizado. Passa por alguns troços difíceis – areia funda e cheia de sulcos. O pessoal, entretanto já inventou outra passagem que parece mais transitável mas ainda não é desta que nós vamos experimentar. A travessia de alguns troços ofereceu mesmo bastante dificuldade – mandei um tralho, atasquei, moí um bocado de embreagem, o que é fato é que a moto está pesada, mas também há a inadequação de quem acabou de fazer 3000 km de asfalto e o atrofio mental de ser aqui o verdadeiro início de uma grande viagem para uma moto de 300 kg num areal tipo Comporta rodeado de minas.

Mal entrou na areia a moto do Carlos resolveu fazer uma gracinha como a AT do Luís Lourenço com o fusível fundido o ano passado. Neste caso foi um borne da bateria desapertado. Numa viagem destas – com objetivos fixos de distâncias a percorrer em determinado prazo, a sensação de uma avaria é terrível. O motor soluça e todas as nossas certezas vacilam, o céu encobre, os pássaros calam-se e o coração e outras partes do corpo ficam pequeninos.

Há anos que anseio viajar sem essa pressão – adorava um dia viajar de tal maneira que uma avaria me divertisse – “Paraste? Ótimo! Também estava cansado e assim aproveito para passar aqui três semanas enquanto me enviam o Motronic lá da Europa” A areia demora a conquistar e é precisa concentração.

Lembrei-me das palavras mágicas que o João Rodrigues me disse uma vez na Comporta – andar na areia requer confiança e eu sei que sei fazer aquilo! Resultou! No troço seguinte deixei a moto trabalhar e levei-a com os pés para onde foi preciso. Tive um bocadinho o sentimento de quem capitaliza um investimento em longo prazo J Está claro que no dia seguinte tive a sensação do jogador que perde tudo à roleta mas isso é outra história J Entretanto os outros avançam com desempenho parecido. Foi uma coisa porreira nesta viagem – temos graus de auto-suficiência muito parecidos. Se eu atascar sei que um dos outros também deve estar prestes. Depois ajudamo-nos mutuamente e seguimos. É porreiro não ter a sensação de que estamos a atrasar os outros e os outros não nos atrasarem a nós. E se alguém ficou para trás não dura muito a angústia de saber se está bem. Reduz-se um bocadinho o andamento e passados uns momentos eis que aparece a luzinha que falta lá ao fundo.

A infra-estrutura fronteiriça mauritana está ligeiramente melhor, mas nada que comece a parecer uma alfândega. Continuam a ser três barracas forradas a cartão por dentro aonde nos vão extorquindo com maneiras variáveis de 5 a 10 euros por cabeça. Isso predispôs-nos a aldrabar a declaração de divisas. Vamos estar muito pouco tempo na Mauritânia e não nos apetece ter de ir trocar dinheiro legalmente e voltar a mostrar o guito todo à saída. Decidimos declarar a improvável soma de 255 euros para todos.

Os gajos sentiram-se insultados na sua inteligência e fecharam-nos dentro da barraquinha – agora ninguém sai e queremos ver o que está neste bolso e naquele e naquele, sim naquele. A primeira coisa que nos ocorre é que a Mauritânia é uma república Islâmica e que pode estar em vigôr a sharia, a lei religiosa. Olho por olho (bem o olho não tiramos a ninguém) O que é que se faz aos mentirosos? Corta-lhes a língua! Bom... enquanto começávamos a imaginar sentenças de morte, prisões perpétuas, castigos corporais e multas gigantescas o Miguel refundiu não sei quanto não sei onde e eu enfiei 10 euros no bolso das calças e fui topado. Mas ganhei tempo com a manobra e enfiei quase 500 euros no meio dos carnets que já estavam carimbados em cima da mesa. No fim da revista e sem se esforçarem muito os gajos tinham descoberto mais 480 euros e passaram-nos um responso. Foi só o susto J, lembramos das recomendações do Quim e seguimos rapidamente, pois era tarde para comermos a primeira refeição do dia assim que saíssemos da vista da fronteira. Apanha-se um bocadinho de alcatrão e a promessa da nova estrada Nouadibou – Nouakshott, mas acaba logo depois de cruzar a linha do comboio do minério.

Depois começa a pista das obras – é uma mistura da antiga pista dos camiões com os desvios que a construção da estrada foi impondo. Não é fácil nem bonita. O pôr do sol estava eminente e avançamos o mais que podemos na expectativa de ainda encontrar um sítio simpático para acampar. Não aconteceu – o vento não descia de intensidade e montamos campo a umas centenas de metros da pista atrás de 3 acácias raquíticas, transparentes ao vento e que ameaçavam furar-me o colchão. O vento não deixou fazer serão e fomos para o choco muito cedo.














20 de abril

Diario, dia 05. De algures a sul de Nouahdibou a Nouakshott

Hoje foi um dia muuuuuuuitoooo comprido... desmontamos campo e fizemos à pista das obras. Ainda se fazem alguns quilômetros sem alcatrão. As obras têm alguns troços com muita areia e não são fáceis. Depois aparece uma estrada que começa no meio do deserto, como se lá não pertencesse. Vai mesmo existir a ligação por estrada entre Nouahdibou e Nouakshott!

Resolvida a terra de ninguém, vai ser possível descer toda a África Ocidental por alcatrão. Ainda há poucos anos e a passagem da fronteira Sahara Ocidental /Mauritânia tinha de ser feita em comboio militar! Vamos ver o que esta ligação por alcatrão vai trazer. Provavelmente, vai passar a existir um Barbas a meia distância das duas cidades principais da Mauritânia. A exigência de autonomia de combustível deixará de ser importante, simplificando a logística de quem viaja para Sul. A questão da navegação deixará de existir. Que tipo de turismo se deitará ao caminho? Para nós, os 300 quilômetros de alcatrão que se seguem anunciam-se uma seca. E, no entanto, apesar da luz feia, embaciada até aos 45º de elevação pela permanente poeira do deserto, hoje estou contente de ver o Sahara a esta distância.

Não há dúvida que quanto mais física e mais lenta é a nossa progressão, mais contacto temos com tudo. Com as pessoas, com os elementos e até com a terra. Quem já viajou a pé ou de bicicleta deve saber do que falo. Nós, nas motos, mantemos a proximidade aos elementos. E em todo o terreno mantemos com a terra um contacto físico, consubstanciado na poeira que vamos comendo e nos 50 metros à nossa frente que temos de avaliar 50 vezes por segundo, sob pena do contacto com o piso se tornar ainda mais físico! Hoje, aqui preguiçosamente no alcatrão, ocorre-me a analogia das viagens “de alcatrão” com o avião. Vê-se tudo melhor de lá de cima, mas o contacto, a ligação, reduzem-se. O que é facto é que hoje estou a ver o deserto como não tinha visto o ano passado. Mas duvido que a minha perspectiva fosse a mesma se não tivesse experimentado o que o Quim me proporcionou, o contacto com o deserto virgem, a sensação de horizonte inexplorado e intocado. O vento Leste continua a castigar-nos pescoços e braços. Às vezes a estrada inflecte para NW e vamos à bolina, outras vezes orienta-se mesmo a Oeste e vamos à boleia: meio centímetro de punho e estamos a 120 km/h! O ano passado passeei por este mesmo deserto um livro de um autor que desconhecia, o Bruce Chatwin. Foi por mero acaso que o livro foi escolhido para a viagem, mas acontece que, a haver um esteta, um teólogo para o nomadismo, esse homem foi o Chatwin. Foi uma coincidência engraçada que teve quase o sabor de uma revelação!

Avante... Lembro-me que o Chatwin conta que o realizador Werner Herzog, outro vadio empedernido, afirma: “viajar a pé é uma virtude, o turismo é um pecado mortal”. Acho que começo a perceber o que é que eles querem dizer. O que será viajar de moto? Ainda é turismo e pecado. Mas acho que é pecadilho.

Pecado mortal é o turismo do resort e transfer :-) . Será que um dia deixo a moto e começo asceticamente a palmilhar a pé milhares de quilômetros?

Acabou o alcatrão e com ele a reflexão metafísica. Ou desces à terra a bem ou a mal, é a gravidade a lembrá-lo J. As obras recomeçaram e estamos já abaixo da latitude de Nouamghar. A oeste está a pista da praia, a mítica pista da maré baixa que todos já conhecemos e que tínhamos combinado não fazer. A idéia é ganhar o máximo tempo possível para as maravilhas a Sul de Nouakshott. Pois... “Vamos pela praia?” “Buga!!!!” Um polícia num posto de controlo perdido no meio das obras confirma as indicações do GPS,o ponto onde a praia passa mais perto é em Tilouit, e para mais segundo ele a hora é a ideal porque a maré esteve baixa ao meio dia. Lá descobrimos uma espécie de acesso que nos deixa a uns duzentos metros do Atlântico. É só cruzar umas dunazitas pequenas e estaremos na praia. Com estas motos carregadas é de fato mais fácil pensá-lo que fazê-lo. Mas somos quatro e mal seria se não conseguíssemos.

Correu tão bem que, com as motinhas já na consistente areia molhada e já viradinhas para Sul, tomamos um banho merecido e almoçamos na calma. Só faltam 200 km para Nouakshott e a maré já vamos ver como é que está... Estava... a encher e com força. J Foi o que percebemos depois da primeira excitação que nos dá sempre que andamos naquela praia. Tivemos que começar a rolar mesmo à beirinha da água, nalgumas passagens havia pedras e lá tivemos que fazer umas trialeiras.

Até que o Carlos é atacado com mais força por uma onda e a GS arreia. Já levantada, recusa-se a pegar. A pista da praia parece subitamente muito má idéia! Arrastamos a moto mais para cima e começamos a desmontar coisas. O filtro de ar está molhado mas não parece que a moto tenha bebido água. Pelo sim pelo não, tiramos as velas. Estão secas mas o que é fato é que não faíscam. Vimos os fusíveis todos, desmontamos todas as fichas, trocamos os cabos de alta tensão, secamos bobines, intercambiamos relés com outra GS e nada. Canhão de ignição? Sensor de Hall? Devíamos ter trazido o esquema elétrico... isso e um multímetro a funcionar. Esqueci-me de verificar o meu e pelos vistos não tem pilhas. De que serve um multímetro sem pilhas na pista da praia, na Mauritânia? Em desespero de causa e após as derradeiras tentativas infrutíferas telefonamos, via satélite, ao nosso anjo da guarda, o João Rodrigues. “Centro de Apoio a Deficientes Mecânicos , boa tarde!”

Foi bom ouvir a voz calma do João, mesmo com o atraso do satélite. “Já secaram as bobines? Isso deve ser o sensor de Hall. Desmontem a tampa da frente e arejem bem tudo. Daqui a um bocado ela pega”. Só de o ouvir fiquei logo convicto que a motinha ia colaborar! Seguimos à risca as recomendações e... nada. Esperamos e... nada. Começamos a equacionar as alternativas: Chegar tudo para cima e acampar, quando a maré descer ir buscar uma pickup... Última tentativa e... não é que ela pegou!!!!!!!!!!!!!!! Fizemos uma espécie de dança da chuva, e arrumamos tudo a correr. O Carlos ficou tão contente que gastou o foguete que levava para quando chegássemos à Guiné.

Agora há que fazer os quilômetros de praia que nos separam de Nouakshott com a maré bem cá em cima e o lusco-fusco a descer. Tiramos o ar possível aos pneus e rolamos na areia seca, vou agradecendo mentalmente as sessões de treino na Comporta, mas por vezes o deserto morre mesmo no mar e não há praia por onde rolar, só dunas. Outras vezes são pedras...

O Miguel vai à frente e manda a Varadero às ondas sem problemas! Nós vamos ficando para trás a pensar em mais avarias... às tantas damos com ele: a moto caída na espuma, uma mala já desmontada e ele a salvar os pertences tipo Luís de Camões J uma coisa épica! Bom, a coisa não estava fácil e a 25 km’s do destino passamos um acampamento de pescadores. Eu, sempre de olho no GPS, não fosse o bicho desaparecer, tentei confirmar. A maré ainda ia subir mais e o que faltava de praia já não era mesmo transitável. Havia uma ligação à estrada de alcatrão que passa uns 8 quilômetros para o interior. Derivamos para lá, já de noite. A tal ligação é tramada – areia mole, funda e sulcada pelos jipes que levam o peixe. Deixo cair a GS uma vez. Levanto-a e depois deixo-a cair mais uma vez, e outra e outra. Concentro-me e volto a cair, experimento em pé e idem. Sento-me, arranco com os pés no chão e caio. Penso, estou cansado, mas não é razão para tanto atrofio... caio novamente! Bom, arrasto-me devagar até que finalmente encontramos o alcatrão. Aí, bebemos a água que sobrava. Já não sobravam era muitas forças para dar à bomba e encher os pneus, de maneira que decidimos fazer os 25 km’s que faltam devagar. Entretanto percebi porque é que caí tanta vez ali atrás! Na primeira queda entortei a projeção da manete direita e tenho a roda da frente travada. Dah... Ainda faltava um episódio: no alcatrão rolei depressa demais. Ia a pensar que o pneu tubeless podia aquecer e descolar da jante quando isso aconteceu, prái a 80 à hora.

Já furei atrás e à frente várias vezes, mas nunca tinha tido um descolanço súbito. A viagem podia ter acabado ali para mim! Varri a estrada toda primeiro para um lado depois para o outro até que consegui parar na berma. O pneu tinha descolado completamente de ambos os lados. Não ia ser possível colá-lo sem ar comprimido forte. A solução foi montar-lhe uma câmara de ar. Operação concluída chegamos, enfim! a Nouakshott. Íamos com o waypoint do albergue onde está a Isabel, a portuguesa que conheci o ano passado em Ouadane.

A Isabel está fora por uns dias, mas o Albergue Sahara tem um aspecto porreiro e lá nos abancamos. É tarde, mas dizem-nos que ainda estará aberto o Bab l’Ksar, o restaurante onde no ano passado descobrimos apoteoticamente cerveja Sagres gelada. É para lá que vamos finalmente respirar fundo! Acabamos com o stock de Sagres e tivemos de passar à Heineken. Bem jantados, de volta ao Albergue, o primeiro taxi que apanhamos desiste da corrida. Explicamos “para o Albergue Sahara ao pé do Carrefour da route de Noauhadibou”. O gajo deve ter percebido, “para Nouahdibou, através da route do Sahara” J disse “Non, non...” estacionou do outro lado da rua e saiu do carro, deixando-nos lá dentro!!! À segunda tentativa, levam-nos sem problema nenhum e podemos finalmente ir descansar. Foi um dia muuiiiiiiito comprido!














21 de abril

Diário, dia 06. A pastar em Nouakshott

Depois de tanta ação e emoção ontem, resolvemos ficar hoje aqui e só voltar à estrada amanhã de manhã. A idéia era dormirmos até tarde e darmos uns carinhos às motos. Mas o ritmo das alvoradas com o nascer do sol já foi interiorizado pelo relógio biológico.

Levantamo-nos cedíssismo. Saímos em busca de oughias (a moeda mauritana a que chamamos atouguias...). É feriado e os bancos estão fechados, de maneira que o taxista nos leva a um mercado onde uns mouros (expressão dele) negociam no mercado negro. Para nossa surpresa, o papel moeda foi reformado! Acabaram-se as notas com que lidamos o ano passado e que literalmente se desfaziam. Depois fomos procurar pequeno almoço. Escolhemos a esplanada do iraquiano. Não se ponham a imaginar uma esplanada exótica, daquelas com empregados fardados e croissants quentinhos J. É um boteco como todos os de Nouakshott, capital pobre de um país paupérrimo. Perguntamos as horas e são 08H15. Mas põem-nos uma ementa à frente como se fosse hora de almoço. A sensação que já tinha levado daqui o ano passado confirma-se: não há uma hora morta nesta cidade! Tudo bule a toda a hora, as lojas, os mercados, as farmácias. A única coisa que parece fechada às 08h15 da manhã de um feriado são os bancos.

Para nós também já parece hora de almoço. Deitamos abaixo omeletes com um sumo de laranja esquisito e um café potente. O iraquiano tenta trocar umas palavras de português conosco – diz que esteve 10 anos no Brasil. Mas ou nunca falou bem ou está enferrujado. O nosso mísero francês consegue ser melhor. Entretanto vimos que há um cybercafé mesmo ao lado. São assim as capitais modernas – muita tecnologia da informação :-). Fomos revelar ao mundo que tínhamos vencido a pista da praia e a primeira avaria mecânica. Enquanto lutava com o maldito teclado AZERT que os malditos franceses legaram a estes países, topei uma mancha gráfica conhecida pelo canto do olho. Não é que o parceiro do lado estava a surfar o advrider.com?! Olhei com mais atenção e confirmei. Meti conversa, era um holandês, viaja sozinho numa KTM 640 como a minha. Que por sinal está com o descompressor automático avariado... começo a sentir-me mesmo muito contente por ter trazido a BM J. O holandês parece que está à espera de uma peça e depois segue para o Senegal e Mali – não tem limite de tempo. Despedi-me um bocadinho invejoso... Voltamos ao albergue e demos uma lavagem sumária às motos para livrá-las da areia salgada.

Entretanto, vamos topando os outros clientes: um grupo deles, franceses, viaja num autotanque de bombeiros alemão que ainda traz as mangueiras no tejadilho e gasta 20 e tal litros aos 100. Outras, belgas, num Land Cruiser com bom aspecto. É tudo pessoal alternativo, são jovens mas parecem um bocadinho anacrônico, como que saídos fresquinhos de Woodstock... parece-me é que eles ficam muito tempo no albergue a falar francês uns com os outros... já nós, que supostamente deveríamos estar a dar manutenção às motos, acabou-se a nossa paciência. Decidimos ir almoçar ao porto de pesca, às barraquinhas de pescadores onde no ano passado comi uma refeição completa por 55 escudos...

Azar, é feriado e as barracas acompanham as instituições financeiras! Estão fechadas! Oito ou oitenta, almoçamos num hotel com ar condicionado à beira da praia! Pelos padrões mauritanos é luxo asiático. Numa mesa adjacente uns oito russos e uma única russa acompanham a refeição a Johnny Walker Black La bel como se fosse refresco. Como o país e os costumes são islâmicos um deles vai pudicamente pondo e tirando a garrafa dentro de um saco de plástico.

O almoço ficou-nos caro e decidimos logo que hoje fabricaremos o jantar. Até lá decidimos ir dormir para a praia e vadiar entre os barcos de pesca.

Como hoje é feriado poucos saíram para o mar. É pena, pois a chegada das centenas de barcos ao fim da tarde era um espetáculo a que esperávamos assistir.

No regresso ao albergue, pedimos ao taxista para nos levar ao mercado dos animais. Ouvi dizer que lá se continuam a vender e organizar a maior parte das caravanas de camelos que ainda transitam o interior da Mauritânia. Explicado isto ao taxista, comprova-se mais uma vez o nível rudimentar do nosso francês: o gajo leva-nos por vielas estreitas ao indescritível mercado da carne e chama um amigo para nos vender uma perna de camelo! O aspecto da carne - ou do que dela se consegue ver por debaixo das moscas - é deplorável! O Miguel, que achava que “peixe não puxa Varaderos” está chocado J! Não obrigado, o jantar é mesmo massa com chouriço, tudo manipulado por nós!

O taxista só percebeu onde queríamos ir quando o Miguel lhe disse, enquanto se abanava e segurava umas rédeas imaginárias: “Se je veux acheter un chameux pour monter, ou est’ce qui je vais?” “Tu veux acheter un chameux pour monter?!” com a expressão de incredulidade ainda estampada no rosto explicou-nos que sim, que existe o mercado mas fica a uns 15 km’s para Este. Ainda não será desta a visita, mas enquanto se despedia, o taxista ainda se ria com a perspectiva de comprarmos quatro camelos.

Entretanto fomos atestar as motos e repor a pressão dos pneus (íamos gripando o compressor – aqui ninguém usa 3 kg/CMM!) e agora que já é noite e está escuro podemos ir fazer a tal manutenção prometida às motos. Ficou-se mais pela intenção mas é o que conta. O Teles insistiu em trocar a lâmpada do fabulem traseiro. Renitente em sair do casquilho, acabou por se partir e cortar-lhe o polegar com alguma profundidade. É uma oportunidade que espero há muito tempo! Fiz o meu ar mais profissional e disse-lhe que era indispensável “um pontinho” sob pena de se desencadearem gangrenas, septicemias, amputações... curiosos, os outros concordaram!

Vou poder suturar o dedo ao Teles e aumentar assim a minha experiência de socorrista! Já com a agulha bem espetada no dedo o gajo borrega... bah, menina! Atamancamos aquilo com cianoacrilato e steristrips, vamos ver se agüenta. Amuado, eu acho que não, mas o dedo é dele. Jantámos chouriço assado em uísque e massa (bem picante, a minha!). Depois de tudo arrumado o Miguel arranha uns acordes numa viola que já só tinha cinco cordas.

O Albergue fica já pago, custou-nos cinco Euros/cabeça/noite. Deixo um recado à Isabel lamentando não cumprir a tradição: fotografar as bonitas ilustrações do seu diário. Amanhã saímos cedo para garantir que atravessamos a fronteira com o Senegal e chegamos a St.Louis. O Teles, mesmo com o dedo amassado, já ronca.














22 de abril

Diario, dia 07. De Nouakshott a Sant Louis (Senegal)

Saímos... cedo, claro. Só para deixar o granel de Nouakshott leva-se meia hora. Ainda no subúrbio as casas/barracas vão-se espaçando mais, e depois mesclando com tendas. Passamos um cemitério, uma simples plantação de lápides, anarquicamente na areia, estranho... a luz aqui é mais intensa, menos filtrada, aumenta enquanto a latitude baixa. É sinal de que vamos apanhar menos vento...
Depois de parar um dia é bom voltar a andar de moto. A temperatura está a aquecer e de fato não há vento. Tenho os sentidos bem abertos, com a consciência de que só hoje começamos a pisar território novo. Mas é curioso, o deserto aqui começa a parecer-me o de Bou Lanouar, o das acácias dispersas, o da pista do comboio, como se obedecesse a qualquer lei de simetria e a Sul se espelhasse o que já conhecemos a Norte. E assim de repente, 160 km’s andados, assim a seguir a uma lomba, aparece de repente uma zona de vegetação mais intensa. São só acácias, pequenas, mas muitas. É isto o Sahel? Abrandamos todos o andamento, todos conscientes que o deserto mudara efetivamente. Contrariamente à minha expectativa, essa mudança não é gradual.

Quando chegamos a Rosso, aí sim, já dá para perceber que há um rio por perto. A estrada é bordejada de árvores. Rosso tem o mesmo ar mísero de todas as cidades mauritanas, agravado pelo fato de ser uma fronteira concorrida. Atestamos as motos e seguimos caminho. Queremos fazer uma pista que corre ao longo do rio Senegal e nos levará à fonte ira de Djama, menos movimentada. Enquanto parávamos numa boutique para comprar água fomos interceptados por uma “melga” que insiste em nos vender um seguro. Segundo ele, o seguro será necessário para passar a fronteira, não se vende em Djama, amanhã começa o fim de semana e na segunda seguinte é feriado,... os argumentos sucedem-se de rajada. É tudo obviamente mentira e torna-se muito irritante quando o gajo insinua que tem amigos na fronteira e saca do telemóvel para, em hassania, descrever a nossa comitiva... mandamo-lo “comer atum” e vamos à nossa vida.

A pista é bem gira, e rompe a monotonia da condução “alcatroada” de hoje. Encontramos uma sombra que nos resguarda um bocadinho da enorme caloraça. Paramos para almoçar e aproveitamos para organizar as papeladas para a fronteira. Desta vez escondemos com muito cuidadinho o dinheiro que não queremos que nos vejam. Mesmo assim vamos escaldados... acabamos por não trocar nenhum dinheiro legalmente pelo que vamos ter de mostrar exatamente os euros que declarámos à entrada (melhor dito, que nos obrigaram a declarar) e jurar pela tese de que não gastamos um cêntimo em toda a travessia da Mauritânia. Vamos lá ver o que isso vai dar. Enquanto arrumávamos a tralha para recomeçar a andar, o Teles chama a nossa atenção: vindo de Nordeste um ciclone aproximava-se. Uma barreira de poeira precedida por uma ventania desordenada. São ventos do deserto.
Arrancamos imediatamente e percebemos que íamos despedir-nos dessa referência geográfica tão forte. O rio Senegal marca o limite ao Sahara de uma forma taxativa. É estranho como um simples rio divide o que parecem ser dois continentes diferentes – a África do Sahara da África negra. À nossa esquerda paúl verdejante, à nossa direita o deserto ventoso.

Até chegar à fronteira, a pista atravessa uma zona de parque natural, vêm-se uns pelicanos, flamingos e outros passarocos de que não sei o nome.

Na fronteira, do lado mauritano cumpre-se o ritual exército-polícia-alfândega. Aqui a liturgia é abrilhantada com mais uma etapa: a comunidade também cobra, alegadamente por causa do parque natural que acabamos de atravessar. Estávamos nós a choramingar um desconto na polícia quando aparece mais uma moto. É o holandês do cybercafé de Nouakshott. Conseguimos incluí-lo no pacote: passamos cinco pelo preço de quatro. O rio Senegal atravessa-se sobre a barragem de Djama e também se paga. O desconto pague quatro atravesse cinco manteve-se.

Do lado senegalês somos recebidos de forma cortês mas autoritária. Compramos seguro a uma senhora que estava a dormir a sesta e lá andamos a negociar o desconto de 20% para o grupo luso-holandês. Tudo somado, para passar da Mauritânia ao Senegal gastam-se uns cobres apreciáveis. Como se não bastasse, no primeiro controlo policial após a fronteira, voltam a querer extorquir-nos. A coisa é posta como sendo obrigatória, mas com margem para negociação, o que demonstra logo o caráter de bakshish. Deixa uma impressão profundamente negativa. À escala do custo de vida e do rendimento médio naqueles países, o pessoal fronteiriço saca quantias exorbitantes e deve viver mesmo muito bem.
A pista, chapa ondulada e areia, prossegue quase até St.Louis. Para nós é uma pista boa, mas certas passagens de areia estão um bocadinho no limite. Já o holandês diverte-se abrindo as goelas à cabeça hi-flow e ao Akrapovic da 640. Hum... e começa a dar-me a inveja outra vez... O deserto desapareceu de vez! A pista é ladeada de árvores e quase surreal para nós que estamos acabadinhos de sair do Sahara. Passamos nos arrabaldes de Saint Louis, em direção ao Zebrabar, um camping em plena Langue de La Barbarie, um istmo que é também parque natural.

O holandês decidiu acompanhar-nos e está exuberante: fala pelos cotovelos, tira fotos e dá umas gásadas à LC4 para se meter com os primeiros senegaleses que encontramos. Na fronteira queixou-se-nos que tinha achado os Mauritanos tristes e pouco comunicativos. O que é fato é que o francês dele ainda deixa mais a desejar que o nosso. E o nosso é muito bera. Lembrei-me da minha viagem a solo à Bósnia. Em quatro ou cinco dias na Croácia e na Bósnia não consegui entabular uma conversa que passasse dos monossílabos. E lembro-me da exuberância que senti quando reentrei em Itália, consegui pedir o pequeno almoço pelo nome próprio “colazione” e imediatamente um motard me aborda e me explica o melhor caminho para fugir à auto-estrada! Também eu falei pelos cotovelos. Não tem muita piada viajar sozinho quando se acerta a tal barreira lingüística. No Zebrabar encontramos outro motard, o Terry: um inglês de 50 anos que viaja numa BMW R100GS que podia competir como “rat bike” mas é na realidade uma preparação HPN muito bem disfarçada: Marzochi Magnum, disco e pinça MAP, paralever mais comprido, carreto da 5.º modificado,... será esta a moto ideal? Uma coisa é certa, desperta muito menos a atenção que qualquer das nossas.

O Terry é raposa velha e explica-nos os truques das passagens fronteiriças – segundo ele, só é preciso tempo. Quando lhe pedem dinheiro diz que não tem. Quando lhe dizem que se não pagar não passa, diz que espera. Quando o vêm começar a fazer chá, já com a tenda montada, normalmente desistem de chateá-lo e mandam-no seguir.

No Zebrabar está ainda um casal de suíços que viaja num Land Cruiser bem transformado. O carro tem 18 buracos de bala e três delas ainda estão dentro do suiço. Aconteceu há menos de um mês, na Guiné-Conakri. Deixaram uma pista principal para escolher um sítio para acampar, passado pouco tempo começa o tiroteio. Ninguém os roubou, ninguém os interpelou. “Só” os balearam... Por comparação o Senegal parece-nos um sítio muuuito civilizado e amistoso enquanto vamos de taxi jantar à Ille de Saint Louis. Entramos pela ponte de Faidherbe, projectada pelo Eiffel para atravessar o Danúbio. E somos largados mesmo em frente ao Hotel de la Poste, onde pernoitavam os ases da Aeropostale, como Saint Exupéry e Jean Mermoz.

Depois da janta ainda fomos ao Iguana, mas não nos podemos demorar. O Zebrabar ainda é longe e combinamos uma hora com o taxista.














23 de abril

Diario, dia 08. De Sant Louis a Dakar

Hoje fui o último a acordar... a sinusite lixou-me o esquema de levantar com o sol. Os outros já levantaram campo e comeram. Doi-me a cabeça. Não temos pressa e vou devagarzinho ao pequeno almoço Zebra que inclui sumo de laranja natural, ovo quente, café de filtro, compota caseira... tudo isto, na esplanada sob os coqueiros e com uma aragem fresquinha a acompanhar. As aspirinas começam a funcionar e não se está nada mal aqui. Volto a interrogar-me quando vamos nós viajar com tempo suficiente para ficarmos o tempo que nos apetecer nestes sítios.

É essa a opção do John, o holandês da KTM. Decidiu ficar pelo menos para amanhã. Ele e o Terry acompanham-nos a Sant Louis na KTM. Não sem antes sugerirem que eu atravesse a vau uma zona pantanosa que separa a Langue de Barbarie do continente. A idéia era eu ir à frente para fotografá-los. O que é fato é que depois de me verem atacar alardemente no lodo deram de sola a rirem-se, por um caminho perfeitamente praticável que eu não sabia que existia.

Tivemos de deitar a GS para desatacá-la e em conseqüência tive um daqueles momentos negros em que a mecânica não colabora. Não foi nada de especial, mas depois do susto que a GS do Carlos Azevedo nos pregou na praia, estamos todos muito susceptíveis. Parece que os meus cabos de alta tensão já não estão grande coisa e ao deitar o cilindro esquerdo na lama a moto ficou a trabalhar só com o direito. Tive a minha vingança quando o holandês chegou ao alcatrão e deu com o pneu da frente em baixo. Tinha deixado a tralha no Zebrabar e tive de lhe emprestar a bomba. Quando um gajo quando nasce vocacionado para a assistência em viagem, não há nada a fazer.

Separamos à entrada de Sant Louis, onde nós ainda demos uma voltinha com as motos, a ver se descobríamos um sítio giro, barato e com vista para as motos onde pudéssemos almoçar. A cidade é muito bonita e debaixo de um sol franco deixa ainda perceber o esplendor dos tempos em que era a capital da África ocidental francesa.

Muitos edifícios parecem congelados há duzentos anos. Outros foram já restaurados desde que a cidade se tornou patrimônio UNESCO em 2000. Volto ao hotel de La Poste: Saint-Exupéry é uma das minha referências, casou com os ares e namorou com o deserto.

É pois com curiosidade assumidamente iconográfica que fotografo a placa da Aeropostale tão bonitinha. Será igual à de origem? Não entramos para perguntar e ver o hotel e foi pena. Mas acho que vou voltar a passar aqui. Decididamente já gosto do Senegal.

Como o pequeno almoço Zebra até rendeu, fizemos à estrada, objetivo Dakar. Andamos apenas 19 km e em Rao surgiu-nos o tal sítio perfeito para almoçar. Parece uma espécie de franchising da Maggi, com uma decoração shocking e um aspecto limpinho e simpático.

As mãos lavam-se na mesquita mesmo ao lado. O muezzin estava a fazer o sound check ao amplificador (a sério!) mas felizmente calou-se entretanto. Almoçamos calmamente e aproveitei para desmontar o ecran da Adventure. Já vinha partido desde a fronteira de Guergarat e uma vez que acabamos as longas ligações de alcatrão e vento já não me faz falta. Além disso, através dele tenho dificuldade em avaliar o calibre dos buracos da estrada e não estou descansado com a minha roda da frente. Já gastei a câmara de ar de reserva e se a trincar numa cratera só me resta remendá-la.

O meu almoço estava bom! Arrozinho míudo com guisado de peixe. Pão e laranjas e café e tudo! Os outros ainda não se deixaram convencer gastronomicamente e continuam a omeletes que também tinham bom aspecto. Depois de arrancarmos a paisagem volta a mudar – as acácias são maiores e o Sahel muda para savana, já há ervas... aparecem os primeiros embondeiros, gigantes, imponentes. As terriolas são simpáticas e têm aquele ar arrumado que falta às cidade.

Não sei se é por ser sábado mas as mulheres são todas parecidas com a Naomi Campbell!! Até Dakar aumenta a densidade de pessoas, Naomis incluídas. Chegamos aos arrabaldes da capital ao lusco-fusco. A estrada é larga, movimentada e poluída. Temos um waypoint para um parque de campismo, o Hippo, que esperamos seja parecido com o Zebra. O gajo que tirou o waypoint deve ser da minha raça, pois naquelas coordenadas não mora nenhum “campement”. Seguiu-se um rali paper pelas ruelas de uma aldeia de pescadores entre a estrada e a costa. As ruas são de areia relativamente funda e temos mirones com fartura – o que aumenta 200% o grau de dificuldade de qualquer pista. Lá conseguimos descobrir os restos mortais do tal Hippo. Felizmente está fechado pois parece um campo de refugiados pequenino. Decidimos ficar no hotel Flamboyant mesmo à beira da estrada principal e ir jantar ao centro de Dakar de moto. O nome não corresponde bem ao aspecto do estabelecimento mas está acima dos nossos mínimos e o preço não escandaliza.

Aproveitei a cobertura de GSM e falei para Portugal a matar algumas poucas saudades. O André está em Tancos a ver a mesma Lua cheia que eu – parece que vou perder o que seria o meu primeiro salto nocturno! Cães! pensei eu! O gajo está em Dakar! Cão! pensam eles. O dono do hotel convence-nos que é perigoso levar as motos à noite mesmo para o centro e lá nos vende baratos os serviços de um taxi. Perigo por perigo mais valia ter enfrentado o de perder a moto! O trânsito é caótico, os peões atiram-se para a estrada e nós é que nos sentimos vulneráveis dentro do taxi que parece que vai perder uma roda a qualquer momento.

Ao menos o taxista é simpático no seu papel de cicerone. Não parece é conhecer muito para além da Place de l’Independance. É grande e bonita, lembra Marselha. Combinamos uma hora para o regresso e escolhemos o Viking para jantar. São dez da noite e as ruas estão escuras e estranhamente calmas. Enquanto esperamos infinidades pelo jantar, vão chegando Naomis e cavalheiros brancos ao bar.

A atmosfera tornou-se engraçada com os ocidentais decadentes a fazer lembrar mercenários, artistas e personagens de Corto Maltese. Quanto a nós, estamos muito bem dispostos: há música ao vivo, uma guitarra muito bem tocada. Nós também estamos um bocadinho (... tocados... ) e felizes de estar no destino mítico, a Dakar dos Parises Dakares todos da nossa adolescência. O jantar atrasou-se e vamos buscar o taxista para beber uma Gazelle conosco. Acho que lhe demos uma boa prenda, as ruas estão agora iluminadas, há imenso movimento e dá para perceber que o Viking está manifestamente in.
Os vinte quilómetros de regresso ao hotel fazem-se no meio de uma balbúrdia imensa. São duas da manhã e esta gente não dorme!














24 de abril

Diario, dia 09. De Dakar ao Barracuda, algures no delta do Saloun

No Flamboyant um catraio oferece-se para lavar as motos enquanto tomamos o pequeno almoço. Elas bem precisam e nós aceitamos. O plano para hoje é simples: primeiro vamos em peregrinação ao Lac Rose, depois seguimos para Sul até um sítio qualquer.

Os subúrbios de Dakar que temos de atravessar para descobrir o Lac Rose não são bonitos. Mas há qualquer coisa de dinâmico, de grande movimento, que me faz gostar destes sítios. Têm de ser as pessoas. A primeira vez aconteceu-me em Luanda, já lá vão uns quantos anos. A cidade estava cheia de lixo e apresentava cicatrizes de guerra. No entanto, o bulício todo, a dinâmica das pessoas e a alegria dos miúdos deixaram uma impressão muito positiva. No fundo é a antítese da baixa lisboeta a um domingo de manhã. Em regra não gosto de cidades, mas as cidades vazias são mesmo deprimentes. Aqui as pessoas são muuuuitas, as ruas nunca estão vazias e o ambiente é alegre.

Lá demos com o lago que é mesmo cor de rosa. O teor de sal é elevadíssimo, mas a cor rosa é devida a uma bactéria qualquer. Para nós é tinto! A característica notável do Lac Rose não é a cor! É o facto de lá terminar invariavelmente o Paris-Dakar. No último dia de prova, faz-se uma especial de cerca de 30 Km. Além de consagrar vencedores, esta especial é a última oportunidade para os mais rápidos conseguirem uma vitória numa etapa. Grandes despiques têm ocorrido, com motos com depósitos de 30 e tal litros a competirem como numa pista de motocross. Em 2002, por exemplo, o Paulo Marques ficou a apenas um segundo do Giovanni Sala na luta pelo primeiro lugar na etapa. Para os outros, os lentos, o Lac Rose é uma miragem que pode durar até quinze dias. Todos sonham lá chegar e a maioria não consegue.

Iam seguir-se momentos de introspecção, e eu ia recolher uma amostra da água para o meu amigo Zinga, quando fomos distraídos por uns miúdos a vender bugigangas para turistas. Está visto que o local é alvo de muita romaria! Bom, vamos mas é dar uma volta a isto, ao lago! Os putos olharam desconfiados para o porte das motos e das malas, inversamente proporcionais ao aspecto dos pilotos (exceção feita ao Miguel Casimiro que nesta viagem exibe o ar mais “piloto de fábrica” de todos nós) e perguntam inocentemente “mais ça monte les dunnes???”.

O “ça” era claramente depreciativo: já lá deve ter passado muita GS que se foi atascar nas dunas... “On essaye” foi a resposta, a não querer aumentar as expectativas. E ensaiamos com sucesso!
Atingimos a praia pelos traços repetidos de todos os competidores que já lograram terminar a mítica prova. Desculpem o tom histriônico, mas isto são muitos anos a chorar em frente ao Eurosport!
Em todo o caso, a pistazinha não é pêra doce. É mais ou menos como a Comporta (outra vez a Comporta! deveria ser considerada reserva natural de aprendizes a motard africano...) mas com umas subidas valentes. Parei no alto de uma para documentar fotograficamente o momento histórico e estava a ver que já não arrancava a descer.

Gastamos a manhã na voltinha ao Lac Rose, mas valeu a pena, tal foi a realização.
De volta à estrada passamos a reserva de Bandia e optámos pelo safari. A reserva é um bom exemplo de conservação da natureza e de negócio muito bem feito. Vimos antílopes, impalas, búfalos, girafas, rinocerontes... a bicharada toda. A mim não me entusiasma por aí além o conceito de reserva... era bom que subsistissem mais parques naturais com extensão suficiente para alojar todos estes bichos mais os seus predadores naturais.

As reservas como a de Bandia são uma espécie de reforma dourada para os herbívoros: condomínio fechado, ausência de predadores e cuidados médicos gratuitos. Em todo o caso, só pela flora a voltinha teria valido a pena. Avistam-se bosques de embondeiros, surreais nas suas enorme dimensão e esparsa densidade. O guia é simpático e conta-nos a história dos funerais dos griots ao pé de um embondeiro com caveiras lá dentro. Os griots são os bardos, poetas tradicionais, guardiães da tradição oral, membros de uma casta específica.

Animam as festas, contam histórias, falam em público. Apesar da função intelectual, ou se calhar por causa dela, a casta é das menos valorizadas. Como nunca trabalharam a terra não poderiam ser enterrados nela, sob pena de torná-la infértil. Quando morriam, os outros habitantes da aldeia escolhiam um embondeiro adequado e sepultavam-nos lá dentro.

Num esforço de modernização, Leopold Senghor, o primeiro presidente do Senegal, poeta ele mesmo (embora não pertencendo à casta dos griots) atendeu a uma reclamação de igualdade dos poetas e legislou no sentido destes poderem ser enterrados. Alguns senegaleses acreditam que começaram nesse ano as grandes alterações climáticas globais.

Bebemos uma cerveja no restaurante da reserva, mas estamos em modo poupança. Não vamos almoçar aqui, apesar do aspecto suntuoso da cozinha e do serviço. Em vez disso, paramos numa vila e compramos mangas e pão para o almoço. Um miúdo talhante leva-me simpaticamente ao padeiro. Conhece os planteis da primeira divisão portuguesa muito melhor que eu (convenhamos que não seja difícil) e começo a perceber esta diferença significativa para a Mauritânia.

O futebol aqui é forte e dá para estabelecer contato com uma simples palavra: “Figo”. Mas mais sobre o craque da bola mais adiante... J O almocinho é mesmo à beira da estrada e devem estar uns 40ºC a uma sombra que não existe. De seguida saímos finalmente do itinerário principal para uma estrada que perdeu o alcatrão. A paisagem continua a mudar até à zona do delta do rio Saloum. Ismo num ferry por 1200 CFA (Francos Centro-Africanos 655=1 EUR) tendo direito a colete salva-vidas obrigatório.
Uns míudos de uma organização tipo escutista batucavam e cantavam com um ritmo fantástico, a luz do crepúsculo caía sobre a pista linda que nos esperava do outro lado do rio.

 
 
 
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Comentários (2)

16/5/2011 11:56:33
OTAVIO ARAUJO GUGU
Amigos,
Incrível relato de viagem, passando por lugares maravilhosos, cheios de dificuldades mas com a equipe coesa vencendo tudo com bom humor. Prossigam na companhia do Criador, MAS sempre com muita atenção. A todos meu fraterno moto abraço, Gugu - Taubaté/SP
 
10/11/2010 18:48:32
JOSÉ CARLOS TIMÓTEO DA COSTA
Carlos Azevedo e galera da Moto Explorer! Sempre leio as viagens de voces na net. Cara, eu qualquer dia, em muito breve, tambem quero realizar este meu sonho. Rodar por algumas partes destas bandas. Abs, Zeca
 

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