Perseguindo o Amanhecer - Ricardo Lugris

01/11/2015 - Camboja

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O visto de entrada custa 35 dólares, me diz o policial Cambojano, em seu impecável uniforme repleto de insígnias e condecorações,
seguramente adquiridas em guerras presentes ou passadas.
O posto de fronteira, uma cabana de madeira de dar orgulho à imigração do Uruguai em Aceguá, nos anos 60...
Busco minha carteira no bolso lateral da calça, e ao abri-la, constato que simplesmente não tenho dinheiro.
Vacilei e gastei minhas divisas em contante.
Estou em "terra-de-ninguém" e não tenho meios para pagar o visto.
Acabo de passar o contrôle de imigração e alfândegas do Laos e me encontro em uma "sinuca de bico" no posto de polícia de fronteira do Camboja, em um confim entre paises, sem recursos, onde pensar em um caixa - automático, é como pensar em uma banca de revistas no meio do deserto de Gobi.
Mesmo assim, pergunto ao agente onde posso retirar dinheiro.
A resposta é: ATM a 50 km, mas o senhor não pode entrar sem o visto.
Com um sorriso, ele me diz, poderiam ser apenas 100 metros, daqui o senhor não passa.
A situação seria cômica se não fosse trágica. Estou no limbo, já saí e não posso entrar.
Decido tentar minha chance, recolho meu passaporte, monto na moto, e retorno os 200 m que me separam da barreira de limite do Laos, país onde acabo de passar uma semana extremamente interessante e agradável.
São comunistas, mas gente boa, penso eu, enquanto estaciono a moto diante dos policiais do Laos.
Surpresos, vem imediatamente verificar o que sucede e, como de hábito nessas situações de caráter mais bem surrealista e inesperado, digo a verdade.
E me aplico para fazer uma cara, (minha melhor cara), de idiota:
Chefe, não tenho comigo dinheiro para pagar o visto de entrada no Camboja.
(Aí, acrescento uma pitada de maldade que sempre funciona;
trata-se de falar um pouquinho mal do país vizinho).
Em qualquer fronteira, eles adoram.
E continuo: como você sabe, chefe, o Camboja é meio atrasado e não é como o Laos, que tem ATM'S em qualquer vilarejo.
Assim, explico que minha única saída é voltar ao povoado mais próximo e retirar o valor em Kips, a moeda do Laos, que felizmente os vizinhos ainda aceitam para o visto.
O agente começa com o procedimento padrão e me diz que terei que anular a minha saída de seu país e refazer a papelada para a moto. (Nem pensar. ..)
Digo a ele que não levarei mais do que 30 minutos para ir e voltar do vilarejo que fica a 15 km e ofereço para deixar com ele meu passaporte.
Ciente da responsabilidade de ficar com meu documento, ele declina essa tarefa e me autoriza, excepcionalmente, a ir, concedendo-me apenas 40 minutos.
A estrada infelizmente encontra-se em péssimas condições.
Faço os 15 km em menos de um quarto de hora, ignorando crateras, buracos, remendos, carroças, cães, porcos e motos, motos, motos...
Torço para que um episódio que vivi na Rússia não se repita: quando tive que fazer 50 km (adicionais aos 920km que já tinha feito naquele dia) para poder pagar o hotel e o caixa automático estava quebrado!
Dou sorte hoje, o caixa automático funciona corretamente e me concede os Kips que preciso para o famoso visto.
Retorno em um salto à fronteira e o policial não está mais lá.
O serviço mudou...
O novo policial responsável não sabe de meu arranjo amigável para circular pela República Popular e Democrática do Laos em situação particular e absolutamente ilegal.
A coisa começa a se complicar.
Para agravar uma situação absurda que se deteriora rapidamente, o novo agente NÃO fala inglês.
Ele pega meu passaporte e me diz que espere.
Um quarto de hora depois, enquanto conto os carros que cruzam a fronteira para o outro lado, (e já tinha contado três), passa o meu velho amigo policial, já à paisana na sua lambretinha, a caminho de casa.
Pego a moto, correndo o risco de literalmente levar chumbo nas costas pelo intempestivo de minha ação , e o persigo por uns 300 m até alcançá-lo, fazendo sinal para que ele se detenha.
Ao reconhecer minha moto, encosta, e eu o coloco a par do que acontece.
Ele prontamente retorna comigo, entra no edifício da polícia de fronteiras e volta com meu passaporte e um sorriso no rosto.
Disse que o pessoal lá dentro estava completamente perdido e não sabiam o que fazer neste caso.
Volto ao lado cambojano e recomeço os meus procedimentos burocráticos para ingressar num pequeno país onde seu passado vai do mais grandioso e espetacular, ao mais miserável e sórdido , dependendo da época da história em que se observem os acontecimentos.
Enquanto espero por minha documentação, percebo que ainda me restam alguns Kips e que não terei oportunidade de os utilizar quando cruzar a barreira para o outro país.
Uma pequena "fortuna", equivalente a uns 6 dólares.
Vou em uma vendinha diante do posto de fronteira e compro uma lata de chips e uma garrafa de água por 2 dólares.
Percebo um grupo de turistas franceses esperando também seus documentos para seguir em um ônibus e decido gastar o restante dos Kips em mais três latas de Pringle's e as ofereço aos turistas.
Uma jovem francesa, surpresa, me pergunta por quê estou fazendo isso.
Respondo que somente um francês colocaria uma tal questão.
Na França, digo, não estamos mais habituados a receber gentilezas de desconhecidos.
No cotidiano, cada um cuida de sua vida, e ponto final.
Concluo minha resposta dizendo que comprei os pacotes de chips por puro pragmatismo, já que esse dinheiro ficaria em meu bolso, sem valor e terminaria invariavelmente em uma gaveta em minha casa para todo o sempre.
As batatinhas, deram a essas cédulas o valor necessário e, para mim, o prazer de suprender algumas pessoas e, eventualmente, atrever-me a fazer novos amigos.
Assim, achando que a vida é curiosamente rica e divertida, me despeço, ligo a moto e entro finalmente no Camboja para conhecer o país do Império Khmer, uma super potência que dominou na idade média o Sudeste Asiático e que deixou um legado de impressionantes construções, entre elas, os templos e palácios de Angkor, Patrimônio Maior da Humanidade, que pretendo visitar nos dias seguintes.
Também é o país que, (como reação aos intensos bombardeios dos US no seu território, visando bloquear o movimento dos vietcongs na Trilha de Oh Chi Min), viu nascer um dos regimes mais absurdamente radicais, cruéis e celerados na história moderna: o Khmer Vermelho.
Quem vem ao Camboja, sobretudo quem percorre o país por via terrestre inteiramente por sua conta e risco, como é meu caso, deve saber que este é um dos países mais minados em todo o mundo, resultado de uma guerra civil e vários outros conflitos regionais, entre eles a Guerra do Vietnam, a guerra secreta do Laos, a guerra civil e ainda a guerra do Khmer Vermelho contra o Vietnam, tudo isso nos últimos 40 anos.
Nenhum viajante deve se aventurar com seu veículo, seja este uma moto ou automóvel, fora dos caminhos perfeitamente batidos e conhecidos.
60 milhões desses explosivos continuam ativos, fazendo milhares de vítimas todos os anos.
A mina anti-pessoal, uma praga ao final de qualquer conflito, é, por definição e cinismo, o soldado ideal.
Produzida a custos irrisórios na China, USA, Vietnam e mesmo no Chile, por muitos anos ela continuará ali, vigilante, pronta a atacar quando a oportunidade se apresentar e sua vítima , seu enemigo, terá a forma de um camponês, um velho ou uma criança.
Em geral ela não mata, faz pior: mutila.
Minha moto permite percorrer espaços e lugares fora de estradas porém, no caso do Camboja, prefiro ficar na limitação e riscos conhecidos da circulação no caótico e absurdamente divertido trânsito das cidades e vilarejos, onde tudo se negocia, inclusive a prioridade na estrada.
Todas essas minas são resultado da guerra civil que colocou o Khmer Vermelho no poder neste pequeno e populoso país.
Um regime tão radical que, num período de 10 anos produziu uma transformação tal na sociedade cambojana que apenas dois médicos restaram em todo o país.
Toda pessoa de nível superior foi enviada aos campos para trabalhar nas lavouras.
Grandes campos de concentração foram criados para erradicar qualquer embrião de capitalismo e milhões de indivíduos foram assassinadas.
Recomendo a leitura do livro, "O Silêncio dos Carrascos", se o tema interessar.
Assim, vou entrando no Camboja com a sensação estranha de que pode sair de dentro da selva que margeia a difícil e enormemente esburacada estrada, um guerrilheiro de pijama preto com um lenço quadriculado vermelho no pescoço e uma AK- 47 nas mãos.
Mas tudo o que encontro são na verdade, acenos e sorrisos neste país onde o passado recente foi apenas de brutalidade e sofrimento e que na superfície, pretende fazer as pazes com si mesmo, mas na verdade, ainda convive com seus imensos fantasmas em uma sociedade totalmente dividida em castas e disputas pelo poder e dominação.
Ah, o poder! A ambição maior do homem.
Com uma temperatura de quase 38 graus, faço uma concessão à segurança pessoal e retiro meu casaco para rodar somente de camiseta.
Com redobrada atenção percorro os 500 km que me separam de Siem Reap, e do confortável hotel que me espera nessa noite.
A circulação ao chegar será do tipo "salve - se quem puder".
As centenas de pequenas motocicletas, antigamente chamadas de ciclomotores, são a massa do transporte de pessoas e objetos na região.
É fabuloso ver tudo o que eles podem transportar com essas pequenas motinhos!
Desde animais, galinhas e patos amarrados pelos pés em todo o entorno da moto, porcos levados cruelmente com as patas para cima, atravessados na traseira da motinho, passando também por feixes de lenha e bambú, compras, bicicletas e até móveis!
Juro que vi passar uma dupla com uma geladeira nos ombros.
Os mais divertidos são os vendedores ambulantes, que com seus pequenos clclomotores puxam enormes carretas cheias de produtos de utilidade doméstica, como colchões, pratos, panelas e bacias e vendidos nas aldeias ao longo da estrada.
Esse folclore dá um colorido especial ao caminho e ilustra de maneira divertida a lenta progressão em uma estrada laboriosa, perigosa e de má qualidade.
No começo da noite chego a Siem Reap, como imaginava, uma caótica e turística cidade que abriga o complexo arquitetônico de Angkor, uma das maravilhas da humanidade, desconhecido do mundo até ter sido descoberto pelos franceses em sua chegada à Indochina em 1860.
O hotel que reservei sai totalmente do padrão de conforto que venho reservando em toda a minha viagem. É um "cinco estrelas" que consegui a um preço inacreditável de 54 dólares com o café da manhã incluído.
Caio nas graças da gerente à minha entrada triunfal com essa enorme moto e ela me oferece um belo apartamento com vista sobre a piscina.
Vai ser uma boa estada, digo para meus empoeirados botões.
Não estou, imagino, muito apresentável para um hotel desse nível.
Minha roupa mostra sinais de cansaco dos muitos quilômetros e infinitos grãos de poeira e barro de múltiplas e variadas paisagens.
Minha aparência e a moto atraem hóspedes curiosos, entre eles um grupo de cariocas que visitam o turístico complexo histórico.
A pergunta de praxe é : você veio nessa moto desde a França?
Minha confirmação é sempre seguida de uma expressão de incredulidade.
Instalo-me finalmente em meu belo e luxuoso apartamento e, após uma reparadora ducha, desço para jantar novamente na pele de um turista qualquer.
Já não sou mais um centauro, perco as asas a cada final de dia, e as recupero na manhã seguinte quando volto a subir em minha motocicleta.
Durante o jantar, a jovem garçonete que me serve pergunta de onde sou.
Para não complicar muito, e fazer jus ao pasaporte que estou utilizando no Camboja, digo que sou francês.
Ela me olha demoradamente e diz:
Não. Eu conheço os franceses, você tem a pele escura, não pode ser francês.
Obviamente, ela não levou em consideração o meu bronzeado de 27000 km e nem toda a imigração africana da França.
A reflexão que se apresenta, na verdade, é de que, como posso ser francês se não convenço nem uma garçonete no Camboja?

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Comentários (3)

3/11/2015 20:21:33
JOEL RHENIUS BIGODE
Parabens pela aventura, esses paises estão em nossos mentes e metas para 2016 e lendo palavra por palavra do seu relato, nos atiça a aventurar-mos por esses paises, vou ler e reler seus belos, relatos, obrigado por compartilhar essa bela aventura, gde e forte abs
 
3/11/2015 12:55:01
IÇARA
só hoje acessei aqui,,,,,guri,tu não existe
haja paciencia e perspicácia.
Vou ter de voltar milhares de letras até o início da mega aventura.
que diga-se, eu adoraria fazer junto, mas de camioneta,,,rss
 
3/11/2015 08:49:03
RAFAEL BARATA
Fantástico, obrigado por nos enriquecer.
 

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