Perseguindo o Amanhecer - Ricardo Lugris

02/10/2015 - Costa leste da Coréia

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Meu bucólico e relaxado passeio "sem lenço nem documento" pela costa leste da Coréia, tendo o mar como referência à minha esquerda, sofre uma súbita e inesperada interrupção.
Uma barrera militar, onde soldadinhos bem equipados, uniformizados e armados à moda americana, controlam cada carro e seus ocupantes.
Estou muito próximo da famosa DMZ, acrônimo para "Demilitarized Zone", a fórmula encontrada pelo comando americano das forças da ONU ao final do sangrento conflito de três anos, que dividiu ao pé da letra, a Coréia em duas nações.
Uma linha imaginária, o Paralelo 38, foi transformada em uma linha real, de aço, campos minados e arame farpado para impedir o contato entre dois países que de irmãos, passaram a piores enemigos.
É minha vez de passar o controle e, ao ver que não entendo coreano, o soldadinho com cara de "Nacionaro Kido" me faz sinal para retirar a moto da fila, estacionar e aguardar.
Alguns minutos se passam, continuo à observar a rotina do posto de controle.
Alguns automóveis passam e outros tantos são obrigados a dar meia volta. São criteriosos e rigorosos.
Aqui não se brinca.
Chega um oficial, falando um bom inglês e cordialmente pergunta onde pretendo ir.
Explico que gostaria de visitar a DMZ, seu memorial e o museu da Guerra da Coréia que se encontra a alguns quilômetros mais adiante.
Ele me pergunta se me fiz identificar pelas autoridades para poder entrar na área da DMZ.
Se eu respondesse a ele que, em função da falta de mapa, GPS, etc, eu apenas tinha conseguido chegar até ali após dois dias na Coréia, é possível que ele me acordasse o mesmo estatus que eu mesmo já me tinha oferecido: um quase - idiota.
Assim, perguntei como fazer para a identificação e onde.
Sou instruído a retornar 15 km na mesma estrada e encontrar o centro de controle e acolhida de visitantes à DMZ.
E ele completa que, de qualquer forma, motocicletas não são autorizadas a entrar na zona de controle militar da linha de demarcação com a Coréia do Norte. A moto fica lá em baixo, diz ele.
Nesse momento, um pouco com os brios de motociclista feridos, pergunto: E por quê motos não podem entrar?
Como bom militar, explica que são ordens. (Ah, isso explica tudo!)
Insisto, e ele me diz que no passado alguns indivíduos tentaram passar para o lado comunista usando motocicletas.
Assim, somente automóveis e táxis podem fazer chegar visitantes aos museus e pontos de observação da DMZ.
Decido ir me identificar e, eventualmente, conseguir um táxi para voltar e dar uma espiada em terras de Kim Yong, "The Menace".
Ao longo da estrada que leva ao Centro de Identificação noto barreiras de enormes blocos de concreto apoiados por bases de colapso fácil, que podem ser rapidamente derrubadas, fazendo assim bloquear a estrada em caso de invasão do Norte.
A coisa é tensa, por aqui. Trata-se hoje da fronteira mais militarizada em todo o mundo.
As duas Coréias, saiba - se, jamais terminaram a guerra de forma convencional, ou formal.
O conflito de três anos, no auge da guerra fria, e que opôs a Coréia do Norte e a China contra uma coalizão de países sob os auspícios da ONU e liderados sobretudo pelos USA, na sua então cruzada capitalista-cristã contra o perigo vermelho.
Ao final de dois anos de uma guerra que aprofundou ainda mais os ódios e diferenças ideológicas nesta pequena e antiga península, as várias partes mostraram interesse em um armistício.
Como a zona principal de conflito se encontrava ao longo do Paralelo 38, determinou-se ali a base para as negociações que duraram mais de um ano com o conflito sempre fazendo mortos, e que culminaram as conversas em um acordo assinado pela ONU, China e Coréia do Norte.
A República da Coréia, que não aceita ser chamada de Coréia do Sul, colocou condições especificas para a assinatura do acordo que seriam; a retirada das tropas chinesas da Coréia do Norte; desarmamento desta última e eleições gerais em toda a Coréia, o que não foi aceito nem pelos Brothers do Norte, nem por seus padrinhos, os chineses.
Sem a assinatura do acordo por uma das partes principais no conflito, ele continua tácita e tecnicamente ativo.
Quer dizer, os dos países encontran-se virtualmente em guerra há mais de 60 anos.
No centro de visitantes sou um dos poucos estrangeiros.
Chega a minha vez no guichet, o policial pede meu passaporte e pergunta sobre meu carro. Informo que estou de moto.
Ele cruza as mãos em X para dizer o que eu já sei: moto proibido.
Eu decido jogar uma cartada inesperada.
Viro-me para as filas de coreanos esperando a sua vez de se identificar e assim poder ver de binóculo os primos do Norte neste domingo de sol, e digo em tom de voz para ser ouvido:
Alguém se incomodaria de me levar até a DMZ e me trazer de volta, já que minha moto não pode ir?
Imediatamente sai da fila um senhor de minha (meia) idade e pergunta se estou só.
Confirmo, e ele diz que posso ir com ele e com sua família.
Excelente! Acabo de ser adotado por uma família coreana e, de quebra, economizo os 80 dólares pedidos pelo táxi.
Agradeço a enorme gentileza e generosidade de John, como ele pediu para ser chamado, já que todos , ou quase todos, os coreanos tem um nome coreano e um nome ocidental. (Assim como também tem duas idades, a coreana, cujo ano é mais curto de uns 20%, e a idade ocidental).
Acompanhado de sua esposa e de suas duas filhas adolescentes, estudantes de inglês na universidade, o passeio se torna uma excelente experiência para todos os envolvidos.
Uma situação verdadeiramente de ganha - ganha.
Eu, a carona e a cultura, eles, a pratica do idioma inglês, um pouco sobre meu (s) país(ses), além de minha simpática companhia. ..
Pude aprender um pouco mais de como as diferentes gerações na Coréia lidam com esse conflito inacabado e com a ameaça latente desse vizinho instável e sujeito a humores variáveis de uma ditadura dinástica desenvolvida a apenas alguns poucos quilômetros mais ao norte.
John e sua esposa ainda acreditam, por princípio e solidariedade, em uma reunificação das duas Coréias.
Eles viveram de crianças, transmitido por seus pais, o trauma dessa separação e de todas as escaramuças, atentados e tentativas de agressão que se sucederam ao armistício em 1953.
Mesmo assim, tem a convicção de que do outro lado também vivem coreanos. Gente como eles, de suas mesmas origens.
Já suas filhas, nasceram e cresceram vendo a Coréia do Norte como um outro país, alheio, agressivo, inconstante e ameaçador, que abraçou a ideologia da ditadura proletária com a mesma ferocidade e tenacidade com a qual a República da Coréia, ao sul, abraçou o capitalismo.
Já não são destinos paralelos. São futuros totalmente divergentes, com possibilidades tênues de retorno.
Em meu passeio pela Coréia nos últimos dias não pude deixar de reparar nas cercas de arame farpado que isolam as praias e portos da península, destruindo completamente qualquer tentativa de apreciação de um belo lugar.
Segundo John, essa rede de arame farpado e altas cêrcas foi construída para evitar a chegada de espiões enviados pelo norte e, para proteger o país no caso de uma muito possivel invasão.
Os quartéis na Coréia, a do Sul, são todos construídos em lugares estratégicos, levando em consideração a posição defensiva do terreno.
Protegidos como fortalezas, salienta - se a massiva presença de soldados e equipamento militar.
Em uma colina no extremo norte, junto à costa e sobre a linha de demarcação, encontra - se o ponto de observação para os visitantes do sul.
Dalí, pode-se avistar o beligerante território vizinho e sua paisagem belíssima, totalmente fora do alcance de qualquer pessoa deste lado.
É enorme a quantidade de coreanos que vem pagar seus respeito à este lugar, ao museu da guerra e ao memorial da DMZ que procura incentivar o abandono de rancores e ódios, pelo bem maior que seria a existência de uma só Coréia, obviamente, livre, democrática e, inevitavelmente, capitalista.
Se isso acontecerá um dia, ninguém pode sequer prever.
Talvez, se a dinastia sucessória que governa o Norte chegar um dia a seu fim e reformadores tomarem o lugar, com uma mentalidade menos beligerante, alguma esperança poderá existir.
O custo disso? Difícil prever.
Quiçás somente a Alemanha hoje teria condições de tentar uma avaliação, por razões historicas recentes e evidentes.
Retornamos todos no carro de John, depois de algumas horas de boas conversas, aprendizados mútuos e, logo após uma breve sessão de fotos junto à moto, despedimo-nos de forma carinhosa e amigável, para provavelmente nunca mais nos vermos.
E assim é um pouco o curso da vida, onde a direção e o futuro de pessoas, de povos, de nações inteiras é determinada pelo seu entorno, sua cultura, suas decisões políticas e, muitas vezes, apesar deles, também pelo seu dirigente de plantão.
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