Perseguindo o Amanhecer - Ricardo Lugris

03/09/2015 - Gobi, no sul da Mongólia

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Tudo pode acontecer rapidamente no deserto de Gobi, no sul da Mongólia: a mudança das estações, a chegada de uma tempestade de areia, variações bruscas de temperatura, ou mesmo, uma inesperada mudança na superfície da trilha que você está percorrendo com sua moto e, ali, na sua frente sem chance de desviar, a pista se transforma em uma caixa de areia.
Moto pesada, a plena carga, a roda dianteira sai de lado e o planeta decide vir de encontro a você de forma um tanto quanto abrupta, quase brutal.
Fui ao chão sem maiores consequências fisicas. Apenas meu ego sofreu alguns ligeiros arranhões.
É assim, 100% de atenção não é sempre suficiente.
Também é necessário estar pendente de outros detalhes aparentemente sem importância, tais como, retirar o defletor do párabrisa para poder ter melhor visibilidade do solo a curta distância. E lembrar-se de inibir os sistemas de ABS e de Antipatinagem da moto (muita eletrônica nessa moto!) para andar na trilha.
Distraído, deixei o asfalto por uma das pistas de múltipla escolha, típicas da Mongólia e do Gobi e esqueci os aspectos técnicos de mudança de configuração da moto.
No chão, em função de seu enorme peso, a Mobilete precisa ser descarregada para que eu possa levantá-la.
Decido esperar uma meia hora antes de iniciar os trabalhos de descarenagem, para ver se passa algum veículo com gente que não se importa em ser solidária com um motociclista distraído e "maneta".
Em quinze minutos chega uma 4x4 e desembarcam 4 "chapas" que colocam a moto em pé em um instante.
Curiosamente, um deles era brasileiro, residente na Mongólia.
Decididamente, estamos colonizando o mundo, ou é apenas a diáspora tupiniquim?
Será que tem a ver com o governo atual?
Fazemos uma foto juntos e eu continuo meu caminho, desta vez bem mais esperto, em direção ao sul.
Deixei Ulaanbaatar pela manhã e, percorrendo um misto de boas estradas asfaltadas e de pistas multidirecionadas, onde ficar de olho na bússola é imprescindível, venho me deliciando com a mudança na paisagem deste desabitado país.
De verdes pastagens ocupadas por rebanhos de bovinos e ovinos e, sobretudo, por tropas de centenas de animais que são a paixão e a tradição local, os cavalos.
Esportes de tradição equestre na Mongólia são praticados historicamente em todas as cidades e em todos os níveis.
Já percebi, porém, que para conduzir os rebanhos de cabras, ovelhas e vacas, os tropeiros da Mongólia hoje preferem ao cavalo, a pequena motocicleta de 125cc, fabricada na vizinha China.
Sinais dos tempos.
Seus equinos, de pequeno porte, resistentes ao frio e à intempérie vão se tornando hoje quase animais exclusivos de lazer e de competição, como tem acontecido na maior parte do mundo.
A mudança de cenário na vastidão do pré-Gobi é perceptível e o prazer de rodar em solitário até onde a vista alcança é palpável, evidente.
Sinto-me tranquilo e feliz em estar aqui.
À medida que os quilômetros vão se sucedendo, as cores e vegetação escarsa do deserto começam a se fazer presentes em todas as suas veriedades, sobretudo aquelas produzidas pelos pequenos arbustos e pela extraordinária cor do solo.
A vastidão é quase chocante, você se sente minúsculo e , ao mesmo tempo, um pouco como o dono do momento e do lugar.
Mas, acima de tudo, o que mais impressiona no deserto de Gobi é o silêncio.
Absoluto, presente, concreto. Nenhum ruído.
Há pouca vida animal, além dos que mencionei.
À medida que avanço e me aprofundo no deserto, a terra vai se tornando mais árida, os rebanhos de ovinos desaparecem para dar lugar aos caprinos e cavalos.
Em seguida, em uma centena de quilômetros, estes últimos dão espaço aos rebanhos de camelos, resistentes, independentes e estúpidos, sobretudo ao cruzar a estrada.
Neste momento você seb apercebe que está em pleno deserto de Gobi.
Gobi, em Mongol, quer dizer exata e logicamente, "lugar sem água " .
Trata-se de um vasto platô a uma altura média de 1500 m e é um deserto de carecteristicas sobretudo rochosas.
A areia fui eu que achei com a roda dianteira de minha moto...
Aqui, constato, estamos no lugar mais continental do planeta.
Em nenhum outro lugar do mundo estaremos mais afastados de um mar ou oceano como no sul da Mongólia.
Ao fazer uma pausa para hidratar-me, gesto necessário em qualquer deserto, reverencio o profundo silêncio, sem o ronronar da GS.
A voz ou certos ruídos podem ser carregados por quilômetros.
No campo de tendas em que me hospedei, havia um menino brincando com uma bola de basquete a 200 metros de meu Yurt, que nesta regiao também é chamado de Ger (guêr).
Saí para olhar, pois tinha a impressão que ele jogava exatamente atrás de minha tenda.
Ao amanhecer, o espetáculo no deserto é de uma paz extraordinária.
As pessoas que vivem no deserto são particulares, assim como são sempre particulares as pessoas que vivem em ilhas ou em outros lugares isolados.
Hábitos de proteção e de convivência se criam para fazer face aos elementos e à essa natureza árida e dura que, no Gobi, vem também acompanhada temperaturas baixíssimas no inverno e terríveis tempestades de areia.
A pricipal característica do povo daqui, entretanto, é a extraordinária hospitalidade.
Vivem isolados quase todo o tempo, mudando seus Gers para lugares onde haverá melhores pastagens para seu rebanho.
O ger, ou Yurt, é uma tenda circular, com uma estrutura leve em madeira em forma de raios apoiada por duas colunas centrais. Os raios do teto se apoiam em paredes treliçadas e flexíveis, também de madeira. Essa estrutura é coberta de feltro de lã de camelo para proveer o isolamento tão necessário às intempéries.
No centro do ger há sempre um fogão a lenha que serve de aquecedor e para preparar as refeições da família que convive nessa "casa" de um só ambiente.
Receber uma visita é um momento de comunhão com uma taça de chá ou de yogurte salgado, muitas vezes, de leite de camela. (Escapei dessa, eu ganhei chá. ..)
O visitante deve trazer algo para o dono da casa, eu levei chaveiros, e para as crianças, doces.
Assim, uma conversa compost de vagos gestos e sorrisos se estabelece pelo período da visita. Não é necessário falar.
Despedidas feitas, retorno ao meu campo e ao meu próprio Ger por esses dias.
Aproveitando a maravilhosa tarde de sol e a tranquilidade do Ger, sento-me ao sol, diante da porta, para curtir uma boa leitura.
De repente, de lugar algum, chegam até mim hordas de Gengis Khan!
Sou rodeado por um bando de turistas chineses que avistaram no campo de tendas a minha moto e se lançam em um ávido processo de fotografia de tão estranho veículo.
Querem fotos com a moto, comigo, com eles, sem eles.
Fazem foto do painel, do escapamento, de meu livro.
Sou obrigado a ir buscar um deles dentro de minha tenda pois ele já se dispunha a fotografar minha cama desfeita e meus objetos pessoais espalhados pelo ambiente. Alucinante!
Saio do Yurt segurando do colarinho do intruso chinês e dou um basta!
A guia turística percebe meu desconforto e leva os "hunos da fotografia selvagem" para o restaurante do lodge onde eles deverão jantar. Bem longe de mim.
Ufa!
Passada a tempestade de areia em forma de chineses, volto à minha valorizada e apreciada paz para ter também a companhia de uma imensa, brilhante e nítida lua cheia.
Anoitece no deserto de Gobi, a temperatura desce, a luz diminui lentamente trazendo as estrelas e, mais do que nunca, o silêncio é ouro, e todo meu.
E nesta noite, sinto-me um verdadeiro milionário.

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Comentários (1)

30/10/2015 10:20:33
MARCELO FREIRE
Grande Ricardo, maravilha de viagem, relatos uma curtição, enfim, show! Forte abraço, boa viagem!
 

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