Perseguindo o Amanhecer - Ricardo Lugris

20/08/2015 - Sibéria

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Você sabe que já está na Sibéria quando se vê obrigado a negociar uma estrada totalmente esburacada e ao mesmo tempo tem que administrar nuvens de poeira, mosquitos e motoristas nativos, os dois últimos igualmente agressivos.
Para os primeiros, o repelente basta, mas para os motoristas siberianos, você precisa se armar do que eu chamo de minha fórmula 3P. Paciência, Prudência e... Perseverança!
Mais uma vez, a passagem de fronteira entre o Kazakistão e a Rússia se deu sem maiores dificuldades, sempre, entretanto, marcada pela proverbial e já descrita demonstração de "pequena autoridade" de alguns funcionários.
O ser humano tem absoluta e inata necessidade de exercer poder. Dominar é preciso.
Assim, vi pequenos trabalhadores Kazaks em fila, ao sol de 30 graus, com suas bagagens aos pés, esperando para serem chamados a apresentar seus documentos de viagem na imigração russa.
O "bonitão" aqui, com sua bela moto, teve passagem em preferência, já que os mesmos funcionários, entediados à morte em uma fronteira com ares de-fim-de-mundo, teriam assim, a oportunidade de ver algo diferente por alguns minutos, o que os faria sair do torpor e mesmice de seu cotidiano profissional.
Muito pouco justo, pensei eu, mas a opção não é minha.
Já rodando na Sibéria Ocidental, acerto o meu relógio para o novo horário, (perco mais uma hora) e programo meu GPS para Novossibirsk, a 500 km de distância.
O tempo de viagem? Não se sabe. Tudo vai depender da qualidade do asfalto, do número de caminhões, e da quantidade de vilarejos a atravessar, todos invariavelmente infestados de buracos e pernilongos.
De qualquer forma, a música rola amena e generosa no interior de meu capacete.
Tenho sol e temperatura tolerável de 28 graus, que com a brisa do movimento da moto, deixa-me perfeitamente confortável.
É bom estar aqui
Mais ou menos uma hora depois de passar a fronteira, em um trecho de pouco movimento, vejo uma carcaça de automóvel retorcida e totalmente disforme com pedaços e peças espalhados pela pista.
Instintivamente reduzo a velocidade e começo a perceber detalhes do que é um acidente que vem de acontecer..
Pelo outro sentido chega com estardalhaço uma viatura de polícia russa. Já há curiosos no local.
Trata-se de uma capotagem em uma curva que não teria mais do que 25 graus de inclinação.
Partes do que parece ser um velho Lada estão espalhados por uma área de vários metros.
Seu motorista, ejetado do veículo, obviamente sem cinto, jaz na vala ao lado da estrada, sem que seu corpo tenha sido coberto.
O pudor ainda demora um pouco em lugares onde a vida vale menos.
Chocado e triste por ser testemunha da perda inútil de uma vida humana, retiro - me rapidamente, sem me deter.
Não há nada para ver e, ao mesmo tempo, essa imagem deverá permanecer em minha mente ainda durante muito tempo.
E finalmente, ao final da tarde, cansado pelo calor, pelas imagens e distâncias, entro na muito industrial Novossibirsk, uma metrópole moderna, onde Stalin colocou sua indústria de aço para protegê - la do avanço alemão durante a II Guerra Mundial e em torno da qual colocou também uma rede de Gulags para fornecer mão de obra barata a essa indústria.
Sem maiores interesses turísticos ou arquitetônicos, decido não visitar a cidade e me instalo em um belo hotel de 4 estrelas com uma magnífica vista desde minha janela no 11o. andar sobre o Rio Ob, em um pôr de sol digno de calendário.
No dia seguinte, parto em torno das 9 da manhã com a intenção de compensar a falta de interesse em Novossibirsk com uma visita a Tomsk, a 270 km de distância.
Esta, uma bela cidade imperial preservada dos bombardeios nazistas durante a IIGM, não foi tão bem poupada pelo regime Soviético que construiu, no lugar de velhos edifícios bicentenários, aquelas "coisas" horrendas de concreto e vidro tão apreciadas pelos arquitetos de tendência socialista no pós guerra.
De qualquer forma, Tomsk merece a visita.
Charmosa, universitária e elegante, esse lugar é uma exceção na quase-unânime falta de estética e harmonia uma constanye nas cidades da Sibéria.
Deixo Tomsk após curtir um bom capucino com um "cheesecake",
pois ninguém é de ferro, e decido tomar uma estrada secundária, sempre em direção ao leste.
A poucos quilômetros da cidade, novamente me deparo com uma cena de acidente envolvendo vários carros e um caminhão.
Um deles, completamente desforme no fundo da vala ao lado da estrada.
(Na Sibéria para evitar o "permafrost", essa camada de gelo sob a terra que permanece mesmo durante o verão, as estradas são construídas uns dois ou três metros acima da topografia.)
O local, cheio de curiosos, e bastante confuso, dado o número de veículos envolvidos no acidente, torna - se imadiatamente sensível e perigoso.
Pergunto a alguém, mortos?
A resposta afirmativa com a cabeça do cidadão curioso me faz pensar: Vai ser assim, todos os dias?
Sigo meu caminho bastante perturbado, enquanto vejo passar viaturas da polícia, caminhões de bombeiros e ambulâncias.
Trato de distanciar - me sem saber ao certo se da cena, ou de meus pensamentos.
Logo minha concentração se volta inteiramente para a estrada, parcialmente asfaltada, onde sou obrigado a percorrer trechos longos de terra, esburacados e com uma poeira densa, palpável, onde a visibilidade se reduz a quase nada.
Pegajosa, a poeira se instala nas roupas, no pára brisa e, sobretudo na viseira do capacete, dificultando ainda mais a visibilidade, já quase inexistente.
Faço uma pausa para tirar o "tijolo" da garganta e para dar um tempo a mim mesmo.
Espero um momento onde o número de caminhões, principais causadores dessa poeira hiper-realista, se rwduza e retomo calmamente a minha gestão desse trecho de estrada nos próximos 60 km que vão exigir habilidade e, sobretudo, paciência.
Já novamente no asfalto, e tendo percorrido um pouco mais de 500 km, considero que o dia rendeu e me dirijo a Myriinsk, uma pequena cidade cujo único interesse é ser uma das centenas de estações do mítico trem Transiberiano.
Ali, não consigo achar lugar para pernoite. Não há hotel, hostal ou pensão.
Sem alternativa, parto para uma cidade de nome curioso, Achinsk, (Saudinsk! , desculpem, não resisti à piada infame...) que se encontra ainda a 160 km de distância.
Duas horas e meia depois, já no cair da noite, encontro um pequeno hotel e tento me hospedar.
Digo, tento, porque apesar do fato deles me pedirem mais pelo pequeno quarto, (onde já me avisaram que a ducha não funcionava), do que o 4 estrelas de Novossibirsk, a senhora na recepção, implicou por não encontrar o Visto no meu passaporte.
Na Rússia, você é obrigado a dar seu passaporte com o cartão de imigração no check-in em cada hotel onde se hospeda.
Você tem todo o interesse a preservar esse cartão de imigração até o final de sua estada , ele será exigido não só pelos hotéis mas também pelas autoridades na fronteira.
A senhora em questão não conseguia entender por que alguém não tinha visto.
Mostrei a ela as dezenas de carimbos de entradas e saídas anteriores na Rússia e dizia, Brazilian, NE visa!, e nada!
Ela olhava para mim com cara de disco arranhado (aqui, só para os mais velhos, a nova geração não sabe o que é um disco arranhado) e repetia: Visa, Visa, Visa.
Peguei de volta meu passaporte e meu cartão de imigração, fiz um gesto com a mão girando ao lado de minha têmpora direita para ela, recoloquei as valises na moto e voltei à estrada.
Gesto impaciente meu , talvez, seguramente intempestivo, voltar a conduzir à noite..
Se a estrada é perigosa durante o dia, imaginem no escuro.
O próximo hotel? A 300 km de distância: Krasnoyarsk.
Praticamente mais 4 horas de chão.
Abasteço, bebo tranquilamente um pouco de água, recoloco a música, e nesse momento toca
"Elis e Tom, na belissima " Águas de Março" ...
"É pau, é pedra, é o fim do caminho..."
No meu caso, ainda não é o fim. É apenas a continuação do caminho.
Em torno da meia noite, entro na moderna e bem urbanizada Krasnoyarsk, onde os Soviéticos produziram na IIGM, o melhor tanque de todo o conflito, o mítico, T34.
Em um dia longo e duro, tanto psico quanto fisicamente, começo a procurar no GPS um hotel mais próximo e tentar a minha sorte, sonhando com uma ducha e lençóis brancos. A vida pode ser simples, às vezes.
Em um semáforo, um casal em motocicleta se detém a meu lado.
Perguntam o de sempre, de onde vem, onde vai, etc.
Respondo, e pergunto se eles podem me indicar um hotel.
Eles dizem, siga-nos. O sinal abre e eles avançam.
Vou com cuidado pois nesse momento caminhões cisterna estão lavando as ruas com água. ...e sabão!
Sigo meus guias russos que me levam, com clara evidência em direção ao centro da cidade.
Chegamos a uma grande praça, bem ao estilo das urbanizações monumentais soviéticas e, em um estacionamento, eles se detém em meio a umas 70 ou 80 motos.
Percebo que não me trouxeram ao hotel.
Sou, de clara evidência, a curiosidade da noite na reunião dos motociclistas locais.
A garotada faz a maior festa com minha chegada. Eu, um pouco confuso, surpreso.
A maioria não fala inglês, ou qualquer outra língua mas todos vem admirar a moto e querem fazer fotos, selfies, etc.
A sensação é agradável, você sente uma boa energia, a hospitalidade, o vínculo.
Dois ou três falam inglês e servem de intérpretes.
Para nao ser rude, espero para ver o que vai acontecer. Começo a perguntar se há um hotel nas imediações.
O casal que me trouxe, desapareceu no anonimato de seus capacetes e entre as dezenas de motociclistas presentes.
O que parece ser o líder, me diz que "Panda", um deles, é proprietário de um Hostel e que eu serei seu hóspede naquela noite, gratuitamente.
Ele então me pergunta se já quero ir para o Hostal, ou se aceitaria fazer com eles um tour de moto para conhecer os pontos turísticos de Krasnoyarsk, "by night".
Confesso que, apesar do dia ter sido o mais duro de toda esta viagem, com quase 900 km e 14 h de estradas difíceis, fiquei agradecido e de imediato aceitei o convite.
Saímos em bando, quase uma centena de motos, para passear e visitar lugares particulares dessa cidade.
Perto das 2h da manhã, eles me escoltaram até o Hostel e despediran-se efusiva e ruidosamente (pobres vizinhos) no que foi o fechamento de um longo e extraordinário dia.
Mais um dia em uma viagem de motocicleta.

Ricardo Lugris
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