UMA VIAGEM MUITO PRÓXIMA
Para muitos, uma grande viagem de motocicleta é aquela em que se vai a lugares de sonho, que mexe com o imaginário, sacode esperanças e anseios. É a viagem onde você tem a oportunidade de visitar lugares remotos, culturas estranhas e paisagens desconhecidas.
Fazer uma grande viagem de moto, de maneira geral, e para muitos, implica em cruzar fronteiras, enfrentar situações, povos e línguas diferentes, ver aquilo que na rotina de nosso dia-a-dia não existe ou simplesmente não acontece.
Entretanto, no que me diz respeito, uma grande viagem de motocicleta é simplesmente poder viajar ao interior de mim mesmo enquanto vejo passar paisagens, nuvens e gente.
Sobretudo, é encontrar uma razão para estar ali naquele lugar, naquele momentoKarl May, o célebre autor do “Winnetou” era alemão e nunca colocou os pés nos Estados Unidos, mesmo assim escreveu os melhores livros sobre o oeste americano que povoam nosso imaginário até hoje..
Ele não nunca precisou atravessar o Atlântico para poder ambientar-se e desenvolver a narrativa das belas histórias em sua obra , um dos grandes clássicos do faroeste.
Há poucas semanas fiz uma pequena/grande viagem que em principio não deveria ser difícil de organizar e que tampouco deveria trazer-me muitas novidades.
Estando a trabalho em São José dos Campos, aproveitei os (excelentes) serviços de locação do Átila Fonseca da Boxer Moto Adventure em São Paulo, e junto com um amigo motociclista espanhol, Rafael López, alugamos duas BMW GS F800 e fomos fazer um passeio de três dias por lugares profunda e simplesmente maravilhosos.
Lendo este texto, vocês poderão com toda razão perguntar-se:
Puxa, o Ricardo já viajou por tantos países, que viagem ele pode fazer em torno de São José dos Campos, no Vale do Paraíba?
É isso mesmo, é essa viagem com pontos sinceros de retorno ao interior (do Brasil e meus mesmos) que pretendo contar a vocês:
No século passado, nos anos 80, a Mantiqueira fazia parte de meus fins de semana em trilhas intermináveis, paisagens e contatos deliciosos e histórias com os amigos na padaria, no final desses dias que nos faziam ter dores no maxilar, de tanto rir.
Aproveitando a presença do amigo europeu, tracei um roteiro onde pretendia, pelas pequenas estradas, descer por Mogi até Bertioga e percorrendo o litoral, ir pernoitar na Ilhabela no final do primeiro dia.
Nada mais simples, certo?
Evitando a Rodovia Carvalho Pinto (não há nada mais internacional e sem personalidade que uma auto-estrada), fomos deslizando as elegantes e ágeis GS 800 por entre colinas e fazendinhas do interior de Jacareí, Santa Branca e Salesópolis onde o cheiro do mato, por tanto tempo esquecido retornou a mim como se fosse um presente de boas vindas.
Há muito eu não sentia os aromas de campo de nossa terra. Perfumes de mato, de fazenda e de terra molhada.
O sol de quase verão marcava uma temperatura amena e confortávelPerfeito para a motocicleta. Felicidade existe!
Meu capacete aberto, permitia acesso a todos meus sentidos.
Como é bom voltar para casa! Este é meu país. Estas são minhas paisagens. Esta é minha gente.
Entretanto, não demorou muito para que eu percebesse uma característica desagradável em minha terra para alguns motociclistas com um certo sentido de bom senso, disciplina e segurança, como eu:
O “motoqueiro”, e a sua 125cc...
Meu amigo, esses caras são tremendos! Eu nunca tinha antes percebido a forma absolutamente inconseqüente em que, de maneira geral, esse pessoal pilota uma moto.
Já na chegada a Mogi, rodando a confortáveis 80km/h tenho um “colega” que ultrapassa pela direita e passa como um foguete, a um palmo de minha moto.
Agressão? Desafio? Necessidade de afirmação? Inconseqüência?
Em qualquer caso, seja qual for a razão, ela será sempre injustificada pelo risco envolvido para ambos motociclistas, sobretudo para a saúde do próprio.
Esquecido o assunto, mas com muito mais atenção a outros exemplares dessa particular raça em duas rodas, continuamos descendo aquela serra extraordinária em direção a Bertioga, entre cachoeiras e montanhas com o azul do Atlântico ao fundo.
Visitamos rapidamente a Riviera de São Lourenço, condomínio bacana com ares de Flórida. Sinceramente, prefiro algo mais simples e mais brasileiro.
Logo em seguida, alguém atrás de mim, em um semáforo, pergunta se não estamos com calor com as nossas luvas, botas e jaquetas....
Me viro, e vejo um casalzinho jovem montado em uma 125cc, ele de capacete e bermudas, mais nada.
Sem camisa e sem sapatos, fazia um belo conjunto com sua namorada também de capacete, biquíni e havaianas. Mais um, pensei....
Imediatamente me veio à mente a imagem de um queijo sendo esfregado contra a parede de um ralador... Não gosto nem de pensar, dá até arrepios...
O que você responde para alguém que obviamente acredita no conforto, muito mais do que na segurança?
Disse a ele que minhas luvas, blusão e botas eram como o “colinho” de minha mãe. Serviam para me prevenir e proteger dos imprevistos da vida.
Não acho que ele tenha entendido a profundidade de minha filosofia. Pouco importa. Nossos mundos são absolutamente diferentes. Só que não precisaria ser assim.
Espero que ele, de moto, nunca venha a ter contato com o “ralador de queijo”.
Sempre curtindo os vivos tons de verde da mata atlântica, fomos andando com o mar à nossa direita e chegamos com grande curtição e sem maiores dificuldades, à balsa de Ilhabela onde terminaríamos este primeiro dia em uma verdadeira redescoberta das estradas de meu país.
Com as motos em prioridade, embarcamos em poucos segundos quando carros já esperavam por mais de duas horas. Mais uma vantagem das duas rodas.
Eduardo Wermelinger, meu parceiro aqui no Rotaway, um cavalheiro e sempre um grande agente de relações públicas e boa vontade entre pessoas, pediu-me que contatasse um motociclista amigo seu que estava em sua casa na Ilha.
Relutantemente, para agradar a Eduardo, liguei para o amigo que se mostrou muito simpático e combinamos de jantar juntos naquela noite assim falaríamos de nosso assunto favorito, a viagem de moto.
Isso foi até o momento, acho eu, em que disse a ele que iríamos primeiro encontrar uma pousada, instalar-nos e que eu ligaria mais tarde para combinar onde jantaríamos.
Estou convencido que este amigo deve ter tomado minha ligação como uma possibilidade de insinuar-me para ficar hospedado em sua casa, o que, obviamente não era absolutamente o caso.
O resultado é que o amigo de Eduardo não atendeu mais o telefone e, obviamente, tampouco apareceu para jantar.
Para não parecer mal-educado, deixei um par de mensagens e fomos escolher um bom restaurante para a noitada. Diga-se de passagem, nosso amigo motociclista perdeu uma bela conversa.
Ficamos hospedados em uma lindíssima pousada chamada Mariola, com uma vista contundente de tão bonita, sobre o Pindá.
Recomendo a todos este belo lugar.
Nosso “papo” diante de uma boa moqueca de peixe girou em torno de minhas memórias de lugares como Ilhabela onde por muitas vezes fui, transportado em minha XL 250 por nuvens de borrachudos até a praia de Castelhanos, saco do Eustáquio e outras trilhas maravilhosas deste pequeno e protegido (pelo borrachudo) pedaço de paraíso.
Deixamos a Ilha na manhã seguinte em direção a Ubatuba onde nos esperava um grande nome do motociclismo de viagem brasileiro e ser humano de grande envergadura: Otávio de Araújo, o Gugú, para um passeio em seu barco.
Chegando à Marina Porto-Escondido, lancha preparada, deixamos a pele de motociclistas e nos transformamos simplesmente em turistas de fim de semana.
Mais uma vez, memórias corriam em minha mente e coração. Tive um pequeno veleiro há vinte anos baseado no Saco da Ribeira, em Ubatuba.
Gugú, generoso e acolhedor, levou-nos até a Ilha Anchieta o que maravilhou nosso amigo Rafael por sua natureza, flora e fauna.
Por hábito não percebemos, mas essa costa, quando é traduzida pelos olhos de um estrangeiro, se revela pura, selvagem e absolutamente deslumbrante.
Na praia grande da Ilha Anchieta, o Gugú nos preparou uma excelente caipirinha e, naquele entorno, foram momentos de grande convivência entre amigos com sonhos, valores e objetivos comuns.
Após o belo passeio de barco, nos despedimos e deixamos Ubatuba com um céu e nossos corações carregados de chumbo e gratidão pela hospitalidade do Gugú.
Percebo que a Rio-Santos com chuva é tão bonita, quanto com sol.
Sem pressa, fomos deslizando as deliciosas GS 800 suavemente em direção à outra jóia do litoral Sudeste do Brasil: Parati, onde chegamos ao final da tarde.
Encontramos uma boa e confortável pousada na velha cidadezinha e dedicamos o resto desse dia a curtir o ambiente alegre e descontraído desse lindo e pitoresco lugar.
No domingo, saímos cedo de Parati com o objetivo de avançar pela Rio-Santos até Angra dos Reis e subir para Lídice, Bananal, São Lourenço e Caxambu onde pretenderíamos pernoitar.
Da costa passamos à montanha em apenas uma dezena de quilômetros. As curvas na subida a Lídice e Bananal eram um convite ao prazer.
A BMW GS 800 continua a nos surpreender positivamenteAcostumado com a solidez da minha BMW GS 1200 ADV, não esperava tal estabilidade, resposta e conforto na elegante, leve e ágil GS 800. As motos estavam dando tudo o que esperávamos delas.
Cruzamos as pitorescas cidadezinhas de Bananal e São José do Barreiro, pérolas da memória da época áurea da produção de café em São Paulo.
Deixando o estado Bandeirante e a delicada serra da Bocaina para entrar no sul de Minas e na serra da Mantiqueira, de longe, por sua beleza e grandiosidade, minha serra preferida.
Nos últimos anos tinha esquecido da proverbial simpatia, simplicidade e hospitalidade do povo mineiroFomos subindo para São Lourenço e, às 15 h nos demos conta que, entretidos com tantas paisagens e lugares interessantes tínhamos esquecido o básico: Almoçar.
Uma pausa no restaurante do “Juquinha” para aumentar um pouco a cintura com uma boa porção de cozinha mineira e também, aproveitando o momento, para assistir a largada do GP do Brasil na F1.
Com um pouco de chuva, e muito sono na digestão do feijão, torresmo, costelinha e outras comidinhas “light” da região, fomos toureando curvas até a cidade das águas.
Sinceramente, não achamos muita graça em São Lourenço, talvez, devido ao fato de estamos tão fascinados pelas paisagens de montanha da região, causava-nos estranheza entrar em cidades maiores.
Tentamos tomar um café, mas mineiro ainda não gosta de fazer expresso.
Preferimos, neste caso continuar o caminho para Itajubá.
Seguem-se estradas de curvas perfeitas para a motocicleta. O fim de tarde ensolarado ilumina com surpresa e sem preconceito campos e fazendas.
O cheiro de terra molhada enche o espírito e renova memórias de alguns gloriosos Enduros da Independência onde os morros de minas tinham papel de destaque naqueles tempos heróicos onde se opunham Yamahas DT 180 a Hondas XL 250R.
Passamos por Maria da Fé onde estive em um neutralizado do Independência em 1986.
Exatamente 25 anos me separam daquele momento em que eu ainda era jovem, imortal e indestrutível.
Nesse enduro, na saída da cidade, há muito tempo, os jovens locais faziam parar os competidores para lhes oferecer um copinho de plástico com um gole da boa pinga local.
Esse gesto, simples e hospitaleiro, ficou em minha memória para sempre.
Chegamos a Itajubá em torno das 17 horas. Estávamos desde as 7 da manhã sobre a moto.
Rafael, um motociclista de trilhas e passeios curtos já começava a sentir os efeitos do cansaço.
Verifico no mapa, depois de constatar a pouca vida aparente dessa cidade em um fim de tarde de domingo, que uma estradinha de terra nos poderia conduzir diretamente a Campos do Jordão através de belas paisagens de montanha.
Vamos até Vila Maria, próxima a Itajubá e ali me informo sobre as direções a seguir com um motociclista local.
Há mais de 25 anos atrás eu sabia que nunca se deve perguntar a um “treieiro” mineiro sobre as condições da estrada e nem tampouco direções.
No primeiro caso, eles vão sempre dizer que a estrada é ótima, sem problema algum.
No segundo caso, se eles não souberem as direções, inventam.
Nosso amigo deu-nos as direções, acompanhou-nos até a entrada da estradinha e, quando eu apontei para o céu escuro, carregado de uma grande tempestade e perguntei. Se chover, como fica a estrada?
Ele me disse:
Sem problema, o terreno é arenoso, não dá lama.
Para encurtar a história, “
caiu o mundo” em termos de chuva e o terreno arenoso do mineiro era aquele saibrin, vermelhin, vermelhin, lisin, lisin que ocê desce assim, com a moto meio di ladin, sacumé?
Foram 40 quilômetros de uma lindíssima estradinha, de montanha, abaixo de aguaceiro, onde para subir escorregava e para descer...des-li-za-va.
Acho que tiramos nossa carteira de enduristas de pneu liso nesse dia Foram 2 horas e meia de concentração até nossa chegada, bem molhadins a Campos do Jordão.
No primeiro hotel, encharcados e gelados até os ossos, eu não queria saber se o quarto tinha cama.
Queria saber se tinha banheira, e bem quente.
Meu sonho naquele momento era poder ficar uma hora em “banho-maria”. Fora um longo dia de mais de 12 horas na sela das motos.
Tivemos direito a um belo litoral, montanhas de tirar o fôlego, contato com gente boa e hospitaleira e para finalizar, uma sessão de verdadeiro motociclismo em estradinhas que fizeram de tudo para nos levar ao chão e não conseguiram.
Tínhamos o suficiente para nos sentirmos realizados, de coração realmente pleno.
Uma boa pizza e uma longa noite de sono tranqüilo completaram este maravilhoso fim de semana onde a motocicleta, mais uma vez, presenteou-nos com impressões e registros a serem preservados em nossas almas.
Descemos de Campos para São José na segunda de manhã, e mais uma vez, pontualmente, o caminhão da Boxer nos esperava para recolher as motos e transportá-las a São Paulo.
Para evitar chocar seu proprietário, lavamos as GS800 de toda sua lama e mentalmente reconhecemos que sem essas duas motos não teríamos podido viver um fim de semana de verdadeiros motociclistas em aventura na sua própria terra.
Meu amigo Rafael?
Este reconheceu o privilégio de ter conhecido um Brasil autêntico, distante e diferente das grandes cidades e dos lugares-comuns no imaginário dos europeus.
Para ele, uma grande viagem. Para mim, sem dúvida, a viagem mais próxima.
Isso, obviamente, graças à motocicleta.
Esta última, de forma fiel, invariavelmente te recompensará.
Ricardo Lugris