A MELHOR VIAGEM: A PRÓXIMA
Um dos detalhes mais gostosos da viagem de moto reside justamente na sua preparação.
Desde a concepção à realização, existe um tempo de sonho e idealização que transcende em tua mente e em teu espírito a viagem propriamente dita.
Ciocio Cavallo, um amigo que percorreu o mundo várias vezes em sua motocicleta, presente neste Site com suas aventuras, disse-me uma vez que uma das coisas mais difíceis a cada viagem de moto é escolher, refinar e estabelecer o bom roteiro.
Para onde ir?
Vale realmente a pena?
Merecerá realmente gastar minhas férias e meu tempo disponível nesses lugares ou nessas estradas?
Vou realmente gostar?
É perigoso, chato, arriscado, demorado, confuso, difícil, complicado ou mesmo, impossível ir para esses lugares?
Talvez por isso, sempre penso em cada uma de minhas viagens a partir de um assunto, um tema, um título.Em outras viagens, já fui ver “O Sol da Meia-Noite”, já dei a “Volta ao Mar Báltico”, percorri a “Rota da Seda” e fiz a viagem pelo caminho do “Oriente Express” seguindo em detalhe a rota do trem mítico desde Paris a Istambul.
Costumo sempre documentar-me de forma clara e minuciosa sobre o destino a percorrer. Em moto, você não chega, você PERCORRE.
Como exemplo, neste último caso, comprei um livro que conta a história do trem “Orient Express” que foi também imortalizado na célebre novela de Agatha Christie.
E antes que vocês perguntem, não fui pelos trilhos. Fui, com minha moto pelas estradinhas que levam, de estação a estação, por cidades extraordinárias como Paris, Estrasburgo, Munique, Viena, Budapeste e Sofia, até a exótica e extraordinária Istambul destino final do trem e de minha viagem. ( Bem, dali, teve sempre o retorno, é claro).
Enfim, escolher o tema e o destino adequados lhe levará por horizontes onde você encontrará as referencias históricas, seu contexto no mundo atual e, se possível, o enquadramento geográfico ideal para que essa viagem permaneça gravada em sua memória por muitos e muitos anos. Confesso que gosto particularmente de curtir esse delicioso momento de concepção.
Como não tenho talentos artísticos, comparo ingenuamente com o escultor que observa o bloco de granito durante horas e vê, nesse bloco, antecipadamente em sua imaginação, as formas finais de sua obra de arte.
Observar o Mapa da Europa, da Ásia ou da América do Sul tem para mim efeito similar. Construo em minha mente o percurso em seus detalhes mais mínimos sem tirar os olhos da carta rodoviária.
De dentro desse mapa, de suas centenas de pontos onde estão cidades, de suas finas veias que se traduzirão em belíssimas estradas e caminhos, tirarei a essência que se transformará na forma final da viagem na sela de minha moto.
O grande poeta espanhol Antonio Machado dizia em, “Cantares”:
“Caminante no hay camino, se hace camino al andar,
Al andar se hace camino, y al volver la vista atrás,
Se ve la senda que nunca se ha de volver a pisar”A próxima, viagem, aquela que ainda não fiz é, portanto, a viagem mais desejada.É constante, em meu dia-a-dia, a pergunta de amigos, clientes e conhecidos:
Então, Ricardo, para onde será a próxima viagem de moto?
Daí meu salutar hábito de chegar de um périplo e começar no dia seguinte a olhar detidamente para o mapa na parede de meu escritório. Qual o próximo?
A síndrome de “pós-parto” não chega a se instalar. Eu não deixo. Terminar uma viagem não significa encerrar o prazer de percorrer este nosso belo e interessante (apesar de bem complicado) mundo.
Concordo que entre uma viagem e outra, há sem dúvida a necessidade de fazer uma pausa para voltar ao trabalho, com a cabeça arejada e motivado. (Precisamos trabalhar para poder fazer a próxima viagem, certo?)
Há a necessidade de revisar e manter a moto, renovar com a família e compartir a grande experiência dessa viagem com nossos próximos e amigos.
Apesar de que, poucos entendem na essência o que é percorrer 8 ou 9 mil kms em duas ou três semanas na sela de uma motocicleta.
Para muitos, é curioso, interessante, um tanto quanto irresponsável e, sobretudo, incompreensível.
Tampouco me fascina ver a viagem através do vídeo que cuidadosamente produzimos com belas cenas capturadas durante cada trajeto.
Sempre que vejo o vídeo de minhas viagens, tenho a impressão que não foi a mesma jornada. Trata-se de algo diferente, insípido. As cores não traduzem a dinâmica o calor, a alma da viagem. Não tem o cheiro, o vento nem a poeira, o barulho do vento em meu capacete, a terra entre estrada e céu azul. Tampouco tem o carinho das pessoas que tive o privilégio de viver e conviver enquanto centauro.
Assim, vou imaginando como será minha próxima incursão em terras desconhecidas em novos entardeceres nas chegadas de cada dia de jornada.
Há alguns meses, vinha pensando em fazer no mês de Abril, início da primavera no hemisfério norte, um circuito que me levaria da França através da Itália, à Grécia, sul da Turquia e cruzando pelo norte do Líbano para a Síria e Jordânia.
Através do Sinai, chegar ao Cairo e cruzar pelo deserto para a Líbia e finalmente à Tunísia. Enfim, a volta ao Mar Mediterrâneo. 22 dias, e o retorno em um navio para a França, desde a Tunísia. Preparei essa viagem em detalhes durante meses. Foram muitas horas diante de mapas, guias, Internet e burocracia em Embaixadas e Consulados.
Neste caso, há vários vistos envolvidos, além do CPD. (Carnet de Passage em Douane, o documento que equivale ao passaporte para a Motocicleta e que é exigido na Síria, Egito e Líbia.) Uma garantia bancária que impede você de vender a moto em seu destino...
Como disse antes, estamos em um mundo razoavelmente complicado.Desnecessário dizer que esta viagem, em vista de circunstâncias geopolíticas na região em questão precisou ser adiada, sem data, até que as coisas se acalmem no Oriente Médio. Bem, a bem da verdade, cancelar esta viagem não chegou a ser propriamente uma tragédia.
As Pirâmides de Gizé, Petra, Aleppo, Damasco o Wadi Rum, e o Sinai estão ali por milhares de anos.
Não vai ser um ano a mais ou a menos que mudará qualquer coisa.
Para não perder o embalo, e a motivação, voltei ao mapa. Quase que instantaneamente, talvez movido ainda pela idéia de contornar um mar, fixei o olhar no Mar Negro.
- Parece interessante, pensei.
Turquia, Geórgia, Armênia, Rússia, Ucrânia, Romênia e Hungria. Um belo giro.
Dei como estabelecida a idéia. Restava-me iniciar a etapa de viabilização.
Aqui, começam a surgir várias questões:
Questão 1:
Qual a melhor época?
Decididamente, se você vai à Rússia e Ucrânia, abril é muito cedo e você corre o risco de pegar frio e neve uma boa parte do caminho. Além do mais, essa rota te leva pelas montanhas do Cáucaso e você acaba por encontrar temperaturas negativas. Você tampouco quer pegar o verão. A Grécia, Turquia e Romênia são impossivelmente quentes nessa época. Decisão: Metade de maio.
Questão 2:
Quais são os impedimentos políticos: Há fronteiras fechadas?
Nessa região , politicamente instável, você vai encontrar países que não tem relações diplomáticas. Por exemplo, a Turquia e a Armênia tem suas fronteiras fechadas. A Armênia não se dá com o Azerbaijão. A Geórgia recentemente teve uma guerrinha com a Rússia ....
Questão 3:
Como contornar essas fronteiras?
Depois de longas horas e de exercícios com mapas e guias, consegui colocar no lugar um roteiro onde eu possa visitar lugares milenares como a Geórgia e a Armênia, dois dos primeiros países cristãos no mundo, sem deixar de visitar Sochi, na Rússia, sede das olimpíadas de inverno de 2014.
Questão 4:
O tempo é suficiente para esse roteiro?
Somos profissionais, precisamos trabalhar para ganhar a vida e poder fazer essas viagens de moto.
Portanto, esses périplos são feitos durante nossas férias. Tenho 3 semanas. Posso fazer esse roteiro nesse tempo?
Lembro que saindo de Paris, preciso cruzar a Itália, ferry para a Grécia, cruzar a Grécia pelo norte, percorrer todo o norte da Turquia pela beira do Mar Negro (essa é a idéia básica), entrar na Georgia e Armênia, voltar à Turquia e tomar um ferry para Sochi, na Rússia. Dali, seguindo para o norte e sempre contornando o Mar Negro, cruzar a fronteira da Ucrânia na Península da Criméia e Odessa. Em seguida, cruzar a Moldovia, o norte da Romênia , a Hungria, voltando para a França através da Áustria e da Alemanha. Contados, serão 9002 km em 22 dias. Intenso, porém totalmente viável.
Questão 5:
Vistos? Carnet de Passage? Equipamento especial?
Pergunta fácil de responder com alguns minutos de consulta por Internet. Como fazíamos antes de que a Internet existisse? Com o passaporte espanhol, não preciso de visto para a Geórgia nem Ucrânia. Com o passaporte Brasileiro não preciso de visto para a Rússia e Turquia. Beleza! O CPD não é exigido. Equipamento.... Bem o melhor é não esquecer a roupa de chuva.
Questão 6:
Em grupo, ou sozinho?
Pergunta complicada. Contei a meus amigos com quem fui à África, ao Uzbequistão e à América do Sul sobre a viagem e, obviamente, o interesse surge de imediato. Tô nessa!
O problema aparece quando você se dá conta que seus amigos são mais de 10 e todos querem ir.
Estamos ainda equacionando esse problema. É legal viajar em grupo, mas a logística requerida é muito, muito, mais complexa. Você tem que reservar hotéis para esse bando, a passagem em fronteira se transforma em uma maratona que toma a metade de um dia, as paradas para abastecimento e descanso são sem pré mais longas, etc.
Você perde a flexibilidade e a espontaneidade de uma viagem solo ou eu duas ou três motos. Lugar legal? Vamos ficar aqui esta noite? Impossível com um grande grupo. Você tem que chegar ao hotel reservado, ponto.
O melhor, neste momento, é deixar amadurecer a idéia e sem dúvida alguns de meus amigos encontrarão naturalmente dificuldades pessoais e profissionais que impedirão de fazer a viagem. Assim, você não precisa dizer não a ninguém.
Obviamente, muitas outras questões vão surgindo ao longo desse processo e sua experiência lhe dirá como lidar com elas.
Finalmente, você começa a olhar com muito mais detalhe aquele mapa para ver o que poderá encontrar de interessante pelo caminho.
Belas praias e paisagens, vales, montanhas, monumento históricos e arquitetônicos, belas cidades, cafés, restaurantes, hotéis, onde passar nas fronteiras, onde abastecer e, sem dúvida o melhor de tudo, o contato que você desenvolverá com a gente local.
Você começa a pensar no equipamento para sua moto. Retirar o catalisador, trocar os pneus, fazer a revisão, anexar o camburão extra de combustível, peças, ferramentas, e, sem dúvida, adaptar seu equipamento pessoal ao clima e ao tipo de viagem que você vai fazer.
Sua análise da viagem passa a ser cada vez mais minuciosa e você começa a sentir o gosto da partida.
Você passa a pensar cotidianamente nessa viagem e nas pequenas coisas que precisa organizar.
De hábito, abro um bloco de notas e vou colocando todas essas idéias e tarefas a realizar para evitar deixar de passar alguma coisa importante.
Assim, o projeto vai tomando forma, a viagem vai começando a existir e posso dizer a aqueles que me perguntam:
“Minha próxima viagem será a volta ao Mar Negro.”
O problema depois disso é encontrar o modo de esperar pelos quase três meses que me separam do dia em que deixarei com a moto a garagem de minha casa para esses 9000 km em três semanas de sonho.
Tudo isso, sem dúvida, graças a um bom planejamento.
Ricardo LugrisParis - Fevereiro 2011