ENTRE PRAGA E DUBROVNIK
...ENTRE CHUVA E SOLTexto e fotos: Ricardo LugrisNesta viagem, deixamos nossa casa, Graça e eu em um dia nublado de Agosto de 2002, com nossa BMW 1150 GS e decidimos visitar em princípio, Praga, na República Tcheca, tomando em seguida o rumo sul, atravessando a Boemia, região extraordinariamente bela, repleta de castelos e típicos vilarejos de onde passaríamos para a fronteira Austríaca, visitando Linz e Salzburgo, esta última, a grande cidade-forte da Áustria, berço de Mozart.
De lá seguiríamos ainda na direção sul, cruzando o massivo alpino do Grossglokner a 2.500 metros de altitude atingindo a fronteira da Eslovênia, já no leste dos Alpes.
A Eslovênia, país tão “extenso” que pode ser cruzado em apenas 2 horas, serviria somente como acesso à Croácia, onde desceríamos pela Costa Dálmata, até Dubrovnik, objetivo final de nossa viagem.
O retorno se daria novamente pela Eslovênia, passando a Trieste, na Itália, cruzando o norte da Itália, entrando na Suíça pelo Túnel do Mont Blanc em direção a Genebra, finalmente a Paris e Chantilly, onde vivemos.
O nosso tempo disponível para esta viagem seria de 15 dias. A distância prevista no inicio da viagem seria de 4200 km.
O roteiro foi preparado nos mínimos detalhes privilegiando aqueles lugares de interesse histórico, paisagístico ou simplesmente turístico. Quanto à bagagem , delicada preparação quando se trata de viajar com nossa esposa... Há concessões que precisamos fazer, sem dúvida.
O espaço é limitado, apesar da GS permitir a instalação de duas boas malas laterais além da mala central traseira (topcase), e uma bolsa sobre o tanque de combustível.
Já temos uma certa “manha” na escolha daquilo que devemos levar para duas semanas.
Camisetas e meias variadas, um ou dois jeans , um par de tênis e um de sandálias, um blusão de lã e duas bermudas completam o enxoval.
Visitas a lugares que exigem trajes mais sofisticados não fazem parte de nossos planos em uma viagem de motocicleta.Graça, minha esposa e co-autora de muitas viagens encontrou nas “amostras grátis” uma boa solução para tudo o que seja cosmético, cremes, xampus, etc. São pequenas, economizando enormemente o precioso espaço na bagagem.
Algumas toalhinhas umedecidas, dessas que nos dão nos aviões (são ótimas para limpar as viseiras e o interior dos capacetes).
De hábito, em nossas viagens pela Europa, programamos para que a etapa diária (normalmente entre 500 e 600 km) termine em um lugar de interesse turístico procurando ali hospedagem e aproveitando para visitar o lugar no final da tarde.
Correntemente, hotéis que nos dem um mínimo de conforto, sem luxo. Acreditamos que um bom descanso depois de uma jornada intensa sobre a moto é mais do que justo, é merecido.
Nesse ano, ao comentarmos com entusiasmo sobre a viagem que preparávamos Norton, um amigo, diplomata de profissão, aventureiro e piloto por vocação, acabou se interessando em viajar conosco.
O problema é que Norton, servindo naquele momento na embaixada do Brasil em Bruxelas, precisava de uma boa moto, evidentemente.
Fomos à Concessionária BMW onde sou cliente e propusemos a compra, com garantia de recompra pela mesma concessionária, de uma BMW F 650 com 10.000 km no odômetro.
A moto foi adquirida e seria vendida ao final da viagem por 1.500 Euros a menos.
Norton fez um seguro “all risks” (que na Europa é obrigatório) para a moto, por um período de apenas 30 dias, o custo foi de uns 150 Euros.
Resolvido o problema da moto para o Norton, saímos de Chantilly, num Sábado cinza e frio, atípico para Agosto, em pleno verão.
A Europa vinha sofrendo uma depressão meteorológica e o mau tempo se anunciava em todo o norte do continente.
Ficamos de encontrar com nosso amigo, vindo de Bruxelas em Metz, no leste da França, na fronteira com a Alemanha.
Logo após nossa saída de casa, a chuva não demorou a cair, mantivemos a proa, espírito no mais alto nível, mapa visível na bolsa do tanque e o coração que batia forte pedindo estrada… É sempre uma grande emoção poder partir em moto.
Esse momento, o da partida é, sem dúvida, a coroação do sonho e preparativos de vários meses.
Após reunir-nos com Norton e cruzarmos para a Alemanha, fomos pernoitar em um pequeno hotel com jeito de pensão em Santa Catarina, perto de Nuremberg.
Saímos no dia seguinte cedo e continuamos percorrendo as velozes “autobahns” sem limite de velocidade em direção ao Leste.
A meteorologia não indicava boa coisa. Inundações em toda Europa central, sobretudo na República Checam, leste da Alemanha e na Áustria começavam a fazer grandes estragos.
Apertamos bem o velcro das luvas, fechamos bem os casacos no colarinho, passamos um produtinho para não embaçar a viseira do capacete e, dê-lhe asfalto! A intempérie pensamos, faz parte do motociclismo.
Após 1200 km percorridos nos primeiros dois dias sob uma chuva inclemente, fomos recompensados com a chegada a Praga que é uma cidade realmente de tirar o fôlego por sua beleza, apesar da umidade e do frio que fazia.
Célebre pela riqueza e variedade de seu conjunto arquitetônico a capital tcheca nos hospedaria por três dias, onde tínhamos a intenção de aproveitar a amabilidade e bom astral dos Tchecos, o caráter cosmopolita da cidade e, sua boa cozinha, sem falar em uma das melhores cervejas do mundo: a Pilsener Urquell. E é claro, se possível, gostaríamos também de um pouco de bom tempo.
Este último, infelizmente não só não foi possível, como nos fez testemunhas de uma tragédia humana de grande amplitude: a inundação da cidade pelo desbordamento do rio Vístula que cruza Praga. Em nossa chegada, a população já se encontrava em estado de alerta para uma possível inundação que já vinha atingindo fortemente o sul do país.
O Rio Vistula, em cujas margens está instalada essa cidade milenar, vinha subindo de maneira alarmante.
O hotel em que estávamos hospedados, indicação de nosso grande Norton, encontrava-se a apenas alguns passos da Ponte Charles, cartão postal de Praga.
A angústia estava no ar. Esperava-se para dentro de poucas horas a maior enchente dos últimos 100 anos.
No dia seguinte, com um tempo cinza, mas sem chuva, saímos para visitar a cidade, a pé, como se deve visitar Praga.
Não nos decepcionamos, a cidade é realmente maravilhosa.
No período da tarde a chuva recomeçou forte e percebemos atividades de evacuação de residências próximas às margens do Vistula. À tardinha, voluntários, bombeiros e soldados iniciaram a colocação de sacos de areia formando barreiras para tentar deter o rio.
Isso tudo se passava a apenas 50 metros de nosso hotel...
Fomos informados que o hotel teria de ser imperativamente evacuado no dia seguinte.
O pico da enchente estava sendo esperado para a meia noite. Duro foi ver a expressão no rosto de pessoas que tinham a certeza de que teriam a casa inundada dali a poucas horas.
Sacos de areia, lonas de plástico, barreiras improvisadas em portas e janelas, tudo era utilizado na tentativa de conter o avanço das águas para o interior das moradias.
Praticamente não dormimos nessa noite. Nossas duas motos estavam estacionadas em frente ao hotel e tivemos, em torno das 2 da madrugada, que removê-las para um local mais alto, pois a água já chegava até elas. Na manhã seguinte a ponte já estava interditada ao público. As ruas de Praga começavam a ser alcançadas pela invasão das águas. Impressionante.
Tivemos que deixar rapidamente Praga em direção ao Leste já que nosso roteiro original para o sul não se mostrava praticável, pois as estradas estavam interrompidas. A saída da Capital Tcheca foi bastante confusa e tumultuada com direito a atravessar, por nossa conta e risco, várias ruas já completamente alagadas sob o olhar suspeito de policiais e bombeiros locais.
Tomamos uma estrada secundária, com muito movimento de caminhões e com pouca visibilidade, fazia entre cinco e 7 graus… Fizemos uma parada para descanso em uma pequena jóia arquitetônica, patrimônio histórico tombado pela Unesco : a cidade de Telc (pronuncia-se Telch).
Dali decidimos tomar o rumo Sul em direção à fronteira Austríaca. Muito vento e chuva. A água batia na horizontal. Rajadas de vento insistiam em erguer a roda dianteira da GS. Moto pesada, os 400 km que teríamos que percorrer até Viena não se apresentavam muito positivos. Aliás, nesse momento já vínhamos razoavelmente incomodados com tanta chuva. Estávamos no quinto dia de viagem e ainda não tínhamos visto o sol, nem mesmo tivemos um só momento seco. Por sorte, nossas roupas, em Gore Tex, agüentaram bem e não deixaram entrar umidade ou frio.
A 20 km de Viena, decidimos pernoitar em Tulln, à beira do Rio Danúbio, que de azul não tem nada. Naquela noite, todas as lâmpadas do quarto do hotel foram decoradas com luvas de couro molhadas… Tínhamos dois pares para cada um… Esse item, a propósito, é muito difícil de encontrar realmente à prova d’água. Como dica: compramos dois pares de luvas de borracha usadas por eletricistas, que colocamos por sobre nossas luvas de couro. Isso resolveu o problema de mãos molhadas e conseqüentemente, geladas. Na manhã seguinte, cedinho, voltamos à estrada. Acho que vai ficar monótono se eu disser que estava chovendo…
Nosso destino nesse dia seria Salzburg. A meteorologia finalmente previa sol para aquela tarde.
E meteorologia na Europa a gente leva a serio.
Nosso humor mudou imediatamente. Tínhamos um objetivo para aquele dia: encontrar o sol.
A estrada, um encanto, com aquelas paisagens dramaticamente belas que sempre imaginamos na Áustria. E as curvas… o prazer do motociclista.
Imensas montanhas e campos que dão a impressão de terem tido a grama cortada por máquina.
Enquanto dirigia, no silencio e privacidade de meu capacete, não pude deixar de rir sozinho pensando que a arquitetura da Áustria “imitava” a de Santa Catarina…
Aproveitamos o dia seguinte para conhecer Salzburgo. O tempo, finalmente ensolarado, permitiu que saíssemos de moto usando roupas muito mais leves.
No dia 16 de Agosto deixamos Salzburg pela manhã e partimos novamente em direção ao sul. Precisávamos, para manter nosso programa, chegar a Rijeka, na Croácia, naquele mesmo dia. Muito difícil, devido ao relevo e à distância a percorrer.
Cruzamos os altos Alpes no passo de Grossglokner a 2500 metros de altitude que nossas motos percorreram sem uma queixa... Maravilhas da injeção eletrônica.
Foram mais uns 250 km até a fronteira da Eslovênia que cruzamos nesse dia perto das 9hs da noite. Muito cansados, o dia tinha sido longo em distância e tempo (500km de pequenas estradas, em 12h). Logo após entrar na Eslovênia e ainda a uns 150 km do objetivo proposto para aquela noite, decidimos fechar o dia, procurando um lugar para ficar. A pizza daquela noite teve um sabor inesquecível.
Na manhã seguinte, o trânsito aumentou assim que a bela estrada que percorríamos se estreitou e virou estradinha do interior... Deve ser “auto-estrada” da Eslovênia, disse o Norton. Entramos em seguida, em território Croata e mantivemos a proa em direção à costa do Mar Adriático. Mais ou menos às 13hs vimos o mar pela primeira vez... O cheiro de sal e iodo invade o interior de nosso capacete. Não há quem resista... Estávamos sob um calor de 32 graus. Ha apenas dois dias a temperatura era de apenas sete graus...
Chegamos a Selce, linda cidadezinha de costa e decidimos ficar por ali aquele fim de tarde e passar a noite. Tivemos sorte e conseguimos logo um hotel com uma bela piscina de agua salgada. Foi só o tempo de tirar a bagagem da moto, subir e mudar a configuração: de motociclista a veranista!
O fim de tarde, junto ao mar, com um bom livro e uma cerveja... Se isto é guerra, que dure cem anos...
A decisão para o dia seguinte foi de sair às 6 horas da manhã para evitar o trânsito. A estrada, que nos levava ao Sul, na direção de Split, vai contornando a costa, curva após curva, mostrando baías e enseadas de sonho e um mar azul profundo, quase violeta. A nossa direita, montanhas. A estradinha não permite mais do que 60/70 km/h.
Split se mostra para nós no final da tarde. Não foi muito fácil conseguir hotel. Com uma boa ducha, onde grito minha a alforria após 520 km de muito sol e calor. Bermuda e sandálias vai ser o traje para jantar.
Split, mesmo na Croácia, foi uma das capitais do império Romano. Deocleciano, um de seus Imperadores era originário daqui e neste lugar construiu um magnífico palácio do qual restam as ruínas. A noite foi realmente charmoso tomar uma cervejinha no bar que se encontra na praça contornada pelo palácio de quase dois mil anos.
Nossa ultima etapa, a de Dubrovnik, começaria o dia seguinte. Novamente uma estrada difícil que, além dos turistas, concentraria um grande número de caminhões. Há muita polícia controlando velocidade na estrada. Tentamos controlar a nossa, o que não é muito difícil em função da circulação. Policial Croata não é alguém que a gente queira ter contato ou mesmo que queiramos contrariar...
Não vemos a hora de chegar a Dubrovnik. Sempre quis conhecer este grande enclave medieval dominado ora por Genoveses, Venezianos, ou Espanhóis. Durante a guerra de independência da Croácia e a subseqüente desintegração da Iugoslávia em 1991, Dubrovnik foi duramente bombardeada. Pretendíamos descansar por dois dias e começar a voltar para a França. Nosso hotel não nos decepcionou. Hotel Excelsior, excelente! Os quartos tinham uma magnífica vista sobre o mar e sobre a cidadela fortificada de Dubrovnik. Sol, mar, bons restaurantes, muitos passeios a pé. Dois dias de sonho.
Como dizia alguém, “um dia essa moleza ainda vai acabar”. A nossa, acabou na manhã do terceiro dia onde tivemos que ressuscitar para a realidade da estrada.
Em duas horas, sem maior movimento na estrada sinuosa nessa manhã de sol, estávamos chegando ao “ferry boat” que nos levaria à Ilha de Hvar.
A costa da Croácia é composta de mais de mil ilhas. Hvar, uma das mais bonitas, com 80 km de comprimento e uns 15km de largura, fica situada perpendicularmente a costa.
De Hvar em “ferry boat” novamente para o continente, decidimos deixar a beira-mar e tomamos uma rota rumo ao interior, em direção a Sarajevo, na Bósnia. O interior da Croácia ainda se encontra muito danificado pela guerra de independência. Cruzamos brevemente o território Bósnio. De volta à Croácia no final do dia, percorremos uma região belíssima de montanhas e acabamos decidindo ficar em Novigrad, uma adorável cidadezinha que foi praticamente destruída durante a guerra.
Uma pequena pensão, único lugar com quartos disponíveis nesse vilarejo. A proprietária, fluente em francês, raro na Croácia, recebeu-nos surpresa ao saber que éramos Brasileiros. (E vieram de moto desde o Brasil? Foi a pergunta). De Novigrad, depois de uma despedida emocionada da família que nos hospedou e que teve a paciência de nos contar sua saga durante a guerra de independência em 91, seguimos para a Ilha de Pag, com sua paisagem quase lunar onde não se vê a mais mínima vegetação.
Ligada ao continente por uma ponte, foi famosa em outros tempos por sua produção de sal. Hoje, os bordados, o turismo e a pesca são responsáveis por sua economia.
De Pag, subimos na direção norte para Rijeka e cruzamos novamente a Eslovênia ate a fronteira da Itália. Trieste, única cidade Italiana que pertenceu ao império austro-húngaro, mostra em suas sisudas e elegantes fachadas uma arquitetura não muito em comum com o resto do país.
Aproveitamos para jantar um bom ‘spaghetti a le vongole veracci “, acompanhado de um sério vinho Italiano. De Trieste nos dirigimos a Bergamo onde um casal de amigos italianos nos esperava para jantar.
Conhecemos estes amigos, Tiziano e Daniela, motociclistas fanáticos, durante uma viagem, em um ferry entre a Escócia e Irlanda do Norte, em 2001.
Tiziano é um colecionador de motos antigas BMW com 11 itens em sua coleção, todos em estado absolutamente novo. A mais antiga, de 1937 parece que saiu da fábrica no mês passado.
De Bérgamo, voltamos, via Genebra para nossa cidadezinha no norte de Paris.
Só tínhamos a agradecer pelo resultado fantástico de mais esta viagem onde, apesar da dureza da meteorologia nos primeiros dias, permitiu que aumentássemos nosso vínculo como motociclistas e que pudéssemos conhecer lugares tão extraordinários como os que visitamos.
Sempre que me perguntam qual foi minha melhor viagem,
respondo: A última.Fale com Ricardo Lugrisricardolugris@rotaway.com.br