Aventura de Motocicleta em 1960

NOVA CONQUISTA - BA E GOVERNADOR VALADARES - MG

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As várias paradas feitas nesse difícil trecho da estrada tiveram como principal objetivo fugir um pouco da chuva forte que machucava, e também do frio intenso que deixava meu corpo trêmulo e rijo, dificultando-me pilotar a moto.

Passamos a sentir falta do facão (perdido na estrada mais acima) pelo fato da facilidade que tínhamos de retirar com ele, o barro do paralama dianteiro. Devido à sua falta e não querendo perder tempo, tiramos o paralama dianteiro (devagar como estávamos andando, o pneu dianteiro não jogaria lama em nós) e o prendemos atrás sobre as maletas, para recolocá-lo quando a estrada permitir maior velocidade.

O facão também muito nos ajudara no corte dos galhos das árvores, pelas várias vezes que a moto atolou. Nesse percurso de agora, quando a moto atolava e a deixávamos em pé sozinha como sempre, tínhamos de ir até às árvores e quebrar os galhos com as mãos para depois quebrá-los novamente nas medidas adequadas, a fim de fazermos as esteiras para a moto passar e sair do atoleiro.

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Falei mal do tempo e até parece que ele “se mancou” porque resolveu melhorar, permitindo que à tarde um acanhado sol aparecesse dentre as muitas nuvens.

Mal ou bem chegamos numa cidadezinha de nome Mucuri, distante aproximadamente 40km de Teófilo Otoni, onde paramos por já estar escurecendo pois já eram 18:00h. Se durante dia claro a estrada está terrivelmente perigosa, não quero nem pensar o que poderá acontecer à noite, sem luar e sem farol.

Procurando um lugar onde pudéssemos pernoitar, casualmente encontramos uma oficina de bicicletas onde tinha até espaço para colocar a moto. Nós o conseguimos porque o dono é apaixonado por motocicleta, muito embora ainda não pudesse ter uma.

Amanhã, com certeza, partiremos com o corpo mais descansado e se possível, sem pegar chuva.


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Dia 23 de março. Mucuri-MG / 39º Dia.

Acordamos cedo e por ser madrugador, gentilmente o dono da oficina abriu a porta para nós partirmos, desejando-nos boa sorte.

O tempo está nublado, o frio é bastante, porém não há chuva, o que já é muita coisa. Com o dinheiro que ainda tinha comigo, abasteci a moto e partimos às 06:40h com intenção de ainda hoje alcançarmos Governador Valadares.

A estrada, como era de se esperar, estava esburacada e enlameada, retendo a moto em alguns trechos e obrigando-nos desatolá-la algumas vezes. E como era normal, de tempos em tempos víamos uma fila de carros e caminhões dentro e fora da estrada. Uns atolados e outros apenas parados por estarem enguiçados. Ao passarmos, as pessoas que ali estavam acenavam e davam vivas, saudando nossa coragem por enfrentar intempéries e os muitos obstáculos na estrada. Correspondíamos acenando, mas passávamos ao largo.

Eram 07:30 quando entrei em Teófilo Otoni-MG e parei numa oficina para soldarmos novamente o paralama traseiro e o porta embrulho, colocando-lhe desta vez um reforço, custando tudo Cr$50,00 (dessa vez não foi permitido ao Fernando executar o serviço e tivemos de pagar). Eram as últimas economias que tínhamos.

Para piorar a situação, bem mais adiante, na estrada, o pneu traseiro furou e após trocarmos a câmara e recolocarmos o pneu no lugar, descobrimos que a câmara colocada também estava furada. Não tendo mais michelin (cola) para colar remendo, o que fazer? Bom... dos males o menor porque pelo menos não estava chovendo e com certa tranqüilidade pudemos pensar e achar uma solução. E a encontrada foi:

Desmontamos novamente o pneu, tiramos a câmara furada e a guardamos junto com a outra para consertar as duas no borracheiro mais próximo que encontrássemos. E encontrar borracheiro na Rio-Bahia não era tão difícil por se tratar de um negócio altamente lucrativo, haja vista o péssimo estado em que ela se encontrava.

Após estar o pneu sem a câmara, fomos até onde havia mato rasteiro ao lado da estrada e arrancamos quantidade suficiente de capim para dar consistência ao pneu. Com o capim dentro dele ele se encorparia, dando mais consistência ao pneu, podendo assim acompanhar o aro quando este fosse movimentado pela tração. Dessa forma evitaria do pneu ser cortado pelo aro, o que aconteceria no caso dele deslizar numa arrancada da moto.

Tudo terminado, ou seja, pneu completamente cheio de capim e já montado no aro com a respectiva roda recolocada no lugar, ficamos aguardando quem poderia dar uma carona ao Fernando, porque somente eu iria na moto a fim de aliviar peso.

Demorou bastante e lá vem uma caminhonete com duas pessoas. Fizemos sinal e eles pararam. Perguntamos onde havia um borracheiro e indicaram-nos um lugar que ficava a algumas léguas dali (lá eles falavam léguas e não quilômetros). Perguntando se o Fernando poderia ir com eles até ao borracheiro onde me esperaria, responderam que sim. Então aproveitamos e colocamos as bolsas das ferramentas, as maletas de roupas e o paralama dianteiro na caminhonete, aliviando dessa forma peso na moto.

Assim que saíram “quiquei” a moto e ela como boa menina “pegou de primeira”. Fui acompanhando-a devagar e só após já estar ela andando foi que sentei no banco e passei para o tanque de gasolina, bem na frente dele. Encostei meus joelhos bem próximo dos telescópicos, a fim de aliviar peso na roda traseira e fui assim em segunda marcha, sem dar trancos, evitando valas e buracos até chegar ao borracheiro onde o Fernando já me esperava.

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Demorei a chegar, mas cheguei.

Lá, o borracheiro retirou a roda, tirou todo o capim do pneu (falou ter ficado admirado com o nosso recurso), recolocou uma das câmaras que consertara, jogou a outra fora por estar muito danificada e calibrou os dois pneus. Após consertado recolocamos a roda na mota, e no final não nos cobrou nada, o que foi muito bom. Pois não tínhamos mais dinheiro.

Recoloquei as pastas e maletas no lugar, prendendo novamente por sobre ela o paralama e ficamos prontos para partir.

Essa peripécia toda nos atrasou cerca de umas três horas de viagem, mas mesmo assim chegamos em Governador Valadares por volta das 18:00h, indo diretamente até à cidade que fica um pouco distante da estrada para fazermos outra visita ao Jornal Diário do Rio Doce, onde novamente fomos entrevistados.

Dessa vez tínhamos mais notícias a dar, pois falamos da estrada, dos diferentes costumes dos lugares, dos tombos, do carnaval em Recife, das outras entrevistas que tivemos em jornais e rádios e por aí afora.

Ao terminarmos, convidaram-nos para passarmos o próximo carnaval com eles ali na cidade. Agradecemos o convite e voltamos para a estrada.

Agora o que tínhamos a fazer era conseguir algum dinheiro senão não seria possível continuarmos viagem, tendo em vista que sem gasolina não chegaríamos ao Rio e em lugar nenhum. Quanto à comida, embora estejamos com muita fome por não comermos há muito tempo, vamos nos agüentando.

Conseguimos lugar para dormir e ficarmos junto da moto, numa modesta oficina que acabara de encerrar o dia, cujo proprietário dormia nos fundos.

Em frente à oficina havia um bar que servia comida, mas como a nós só interessava ir até ao banheiro e ao lavatório para tirar o barro das mãos e do rosto, entramos. Para chegarmos até ao lavatório tínhamos de passar pelas mesas onde havia pessoas comendo. Vê-las comendo não nos afetava em nada, por isso continuamos indo em frente. Mas quando sentimos o cheiro da comida vindo da cozinha, próxima ao lavatório, aí é que a coisa ficou feia. A vontade de comer multiplicou, o que nos obrigou lavar-nos rapidamente e logo sair dali a fim de arranjar algum dinheiro e voltarmos para comer.

Então pensamos: O que teríamos que pudesse interessar a alguém? O radinho já haviamos vendido e o dinheiro se esgotara; nossos blusões de couro nem pensar por causa do frio e da chuva; sapatos também não. Nisso, o Fernando disse para deixar com ele porque iria resolver o problema. Saiu e foi numa parte da estrada onde havia caminhões parados para pernoite. Demorou um pouco e aí volta ele dizendo que vendera o relógio de pulso que usava. Não era um Rolex nem um Omega, mas lembro-me que era muito bonito (na época eles eram todos Suíços). Tinha pulseira flexível de aço, mas seu maior destaque estava nos ponteiros e números, por ficarem iluminados no escuro devido à fosforescência deles. E quanto mais escuro o local, mais a luminosidade se destacava. Ver nele as horas no escuro era fácil devido e essa luminosidade fosforescente, mas durante o dia via-se a hora normalmente através do mostrador que era igual ao dos outros relógios.

Bom, o sacrifício foi por uma causa justa e irá ajudar-nos bastante. Após isto, imediatamente nos dirigimos ao bar e pedimos o maior prato-feito da casa, na maior rapidez possível! Ah! Maravilha! Agora vamos encher tanto a barriga, que até camelo ficará babando de inveja.

Já estávamos impacientes, quando chegaram os dois pratões. Colocados à nossa frente, imediatamente pegamos os talheres e começamos a comer. Uma, duas, três garfadas... e a comida ia ficando cada vez mais difícil para descer, até que parei. Parei porque, se não parasse ia botar tudo para fora. Olhei para o Fernando e percebi estar acontecendo a mesma coisa com ele. Então, mesmo com fome, lamentavelmente paramos de comer. É possível que por termos ficado alguns dias sem comer, o estômago desacostumou, ficou preguiçoso, sei lá. Então, ao comermos com voracidade, parece que o impacto no estômago foi grande, ele sentiu e começou a recusar.

A seguir pedimos um saco plástico onde guardarmos as carnes para comermos na viagem do dia seguinte, porque hoje nem olhar para elas podíamos.


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Dia 24 de março. Governador Valadares-MG / 40º Dia.

Novamente acordamos cedo e enquanto o dono da oficina não acordava para abri-la, pegamos a moto, limpamos o pistão do carburador (há muito tempo não limpávamos), fizemos uma verificação geral e constatamos estar tudo certo para continuarmos viagem.

Finalmente o dono acorda e abre a porta para nós. Perguntou-nos se estava tudo bem, respondemos que sim, agradecemos a boa vontade dele e saímos.

Agora com dinheiro enchemos o tanque, colocamos 1 litro de óleo no cárter e calibramos os pneus.

Tomamos o nosso café da manhã às 08:00h e pegamos a estrada que por sinal estava nivelada, sem costelas ou buracos e por incrível que pareça, acreditem, não chovia e o piso estava seco. Ficamos tão empolgados com essas coincidências de bons fatores, que resolvemos abrir o gás. Não ficava nada na nossa frente. Passávamos tão rápido, que quem estivesse na direção do carro, ônibus ou caminhão, se assustava quando passávamos por eles. Em compensação, a poeira do barro levantada pelos carros da frente antes de ultrapassá-los e dos que vinham em sentido contrário, ao baterem em nossos rostos machucava muito, mesmo com os cachecóis levantados até ao nariz.

Não foi uma “esticada” muito grande a que fizemos, fora apenas o suficiente para melhorar nosso ânimo e matar um pouco a saudade da velocidade. Passada a empolgação continuamos apreciando a paisagem que estava muito bonita. Víamos fazendas, morros, rios, animais pastando, currais, muitas árvore frutíferas, passarinhos, gaviões, urubus e outras aves voando, uma beleza. Até cobras, que, sozinhas ou em bandos, atrevidamente atravessavam a estrada.

Passamos por uma cidade pequena no caminho chamada São Raimundo e quando estávamos perto de Caratinga (faltavam uns 20 quilômetros), eis que a corrente sai da coroa (ainda bem que não saiu quando estávamos a quase 100km/h). Possivelmente não saiu porque, Deus, que continuava conosco, certamente não estava disposto a levar um tombo junto conosco naquela velocidade.

Com cuidado encostei a moto na beira da estrada e tratamos de recolocar a corrente. Entretidos que estávamos, não reparamos termos parado próximo a um ninho de cobras, até que vimos uma passando calmamente ao nosso lado. Em seguida passa outra acompanhando a primeira.

Mediante isto, aguardamos para ver se apareceriam mais, mas não apareceu. Parando o que estávamos fazendo, fui até a maleta e apanhei um pedaço de barbante e o Fernando por sua vez pegou uns gravetos da caatinga. Fizemos um laço corrediço na ponta do barbante e o amarramos em um dos gravetos, que no final até parecia uma vara de pesca. Mas que ao invés de anzol, tinha um laço corrediço na extremidade.

Quando íamos atrás das duas cobras que passaram, eis que aparece outra atrás de nós, nos assustando, pois pensamos que ia nos atacar. Mas não. Passou ao largo, apressada, talvez atrás das duas primeiras, e nós então, imediatamente, saímos no encalço dela. O Fernando correu até passar-lhe a frente e eu fiquei atrás. Ela parou e o Fernando então com um dos gravetos prendeu o dorso dela, oportunidade em que enfiei-lhe o laço, ajustando-o logo após ter passado da sua cabeça. Por não ter cabeça triangular, o Fernando falou que esse tipo de cobra não era venenosa, mas por via das dúvidas não me descuidei com ela. E ele, com toda a sua sapiência também resolveu não facilitar.

Fiquei impressionado com um detalhe: Em momento algum ela fez qualquer menção de atacar-nos. Parecia um animal dócil, domesticado. Acompanhando com o laço seu rastejar, parecia que flutuava, tal sua leveza e docilidade no avançar. Então, depois de brincarmos um pouco com ela e mediante seu comportamento educadíssimo, resolvemos soltá-la no mato, extamente no local onde as outras duas entraram.

Afinal não queríamos separá-las, nem maltratar qualquer delas.

Após terminada essa brincadeira e de colocar na moto a corrente, que ao todo demorou cerca de 40 minutos, partimos e chegamos em Caratinga às 11:10, onde paramos para almoçar. Eu falei... Almoçar!

Acabando de comer e seguindo imediatamente em frente, não andamos nem 1 quilômetro e o Fernando por começar a passar mal, pede-me para parar.

O lugar onde paramos não havia nada a não ser mato e algumas árvores. Achamos uma sombra embaixo de uma árvore e ficamos aguardando para ver se passava o mal-estar dele. A princípio ficou calado, depois começamos a conversar até ele dizer que agora já estava tudo bem.

Lembrando da arma que até àquela hora não a tínhamos.
 
 
 
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Comentários (2)

2/2/2017 23:28:22
9GE445PJJ8ST
Towudhocn! Thats a really cool way of putting it!
 
28/6/2016 15:17:34
VRXIGONO
Full of salient points. Dont stop belveiing or writing!
 

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