IBIMIRIM SUBINDO PARA RECIFE
Após entrarmos no quarto e já imbuídos por pensamentos fantasiosos, mal começamos a conversar, e as moças nos passam dois envelopes para serem entregues às respectivas mães em Campina Grande -PB, com a exclamação de que dentro deles haviam bilhetes onde estavam seus destinos e até suas vidas. Então, quando finalmente nos preparávamos para passar aquela maravilhosa noite, não demora muito e eis que de repente ouvimos uma fraca batida na porta seguida de um murmúrio. Assustadas, as moças falando baixinho, dizem para eu e o Fernando sairmos rápido e em silêncio.
O que fazer? Duas pessoas estranhas num povoado estranho, dentro de um quarto estranho com duas garotas também estranhas. Altas horas da noite e um murmúrio de vozes nervosas na porta do quarto. Três metros de altura até ao chão, um galho, uma árvore, e sem poder fazer ruído? É... Não tem o que pensar... O negócio é fazer!
Corremos para a varanda, passamos por cima da grade, seguramos com as mãos o piso da varanda e esticamos os braços. Com corpo estendido ao longo (diminui a altura) soltamos as maõs. Ao bater no chão flexionamos os joelhos e apoiamos o corpo com as mãos. Moleza! Para quem está acostumado em levar tombos de motocicletas e de patins, isso é até brincadeira! Já no chão, corremos até a oficina que por não ter porta foi possível entrar para apanharmos a moto, mas devido ao barulho do motor ao sairmos, o Sr. Severino acordou assustado. Ao vê-lo, para acalmá-lo demos um adeus e saímos em desabalada carreira.
Nem olhamos para trás. Pegamos a estrada e imprimi a maior velocidade possível numa noite que, para complicar ainda mais a situação não tinha luar. Mas pelo menos não chovia. Dos males o menor.
Apesar dos pesares, acreditamos que nossa presença não foi notada por quem quer que fosse.
Dia 27 de fevereiro / Ibimirim-PE - 14º Dia Saímos corridos de Ibimirim ainda na madrugada, mas logo adiante após passarmos pelo povoado de Moderna e antes de chegarmos ao povoado de Placas, o pneu traseiro furou novamente fazendo-nos parar para consertá-lo.
Receamos que ele não suporte mais o “rojão”, coitado. Mas vamos torcer para que aguente pelo menos até chegarmos em Recife. Lá, com dinheiro que iremos conseguir e lojas especializadas de motos, será possível comprar.
Embora estivesse escuro, por medida de segurança para o caso de estarmos sendo seguidos, levamos a moto para um local fora da estrada, obedecendo o célebre ditado popular “seguro morreu de velho”. Assim poderíamos fazer o conserto sem sermos surpreendidos.
Pneu consertado, ninguém em nossa perseguição e chuva fina começando a cair, seguimos em frente e chegamos à cidade de Arcoverde onde arranjamos um novo “manchão”, tendo em vista que o anterior estava muito desgastado e cheio de furinhos feitos pelo atrito com a terra e pedras da estrada.
Já com o dia bem claro passamos pela cidade de Pesqueira, mas antes de prosseguir viagem fizemos um giro por ela. Verificamos ser populosa, com bom comércio e indústria forte, principalmente de marmelada e goiabada, doces feitos das frutas marmelo e goiaba, respectivamente, o que achamos muito interessante, principalmente no caso do marmelo, marmelada que na gíria quer dizer tramóia.
Povo alegre e gentil, cuja cidade tem aparência de ser muito bem cuidada. Porém o que nos atrapalhava naquele momento era a chuva, que tirava muito do nosso entusiasmo e dava uma vontade tremenda de tomar um cafezinho. Mas cadê o dinheiro? Os últimos Cr$15,00 que tínhamos foram usados para colocar gasolina e vamos aguardar até onde dará. Tivemos um gasto descontrolado na ida devido à falta de experiência, por isso, quando chegarmos em Recife terei de fazer contato com meu sócio para termos dinheiro novamente. Mas acontece que a coisa não seria tão simples assim, tendo em vista serem os Bancos um outro detalhe do qual eu também não tinha experiência fora do Rio de Janeiro. Razão de termos de comer, no nosso retorno ao Rio de Janeiro, “o pão que o diabo amassou”.
Saindo das conjeturas e voltando à estrada, continuamos por ela agora já embaixo de chuva, o que nos atrasou bastante devido aos atoleiros e outros perigos à nossa frente.
Mais adiante passamos por Sertânia e São Caitano, fazendo um rápido giro em ambas, depois voltando à estrada e chegando finalmente em Caruaru às 18:00h.
De imediato já dava para perceber tratar-se de uma cidade grande, bem moderna e avançada. Muito comércio, população festeira e comprovadamente hospitaleira (isto nos foi provado).
Depois de entrarmos na cidade e conversar algum tempo com várias pessoas, ficamos sabendo ter ali cerca de 100.000 habitantes, e isso ainda naquela ocasião (início do ano de 1960). Se a informação era verdadeira ou não, desconhecia. Então, por curiosidade, consultei agora o IBGE e descobri que em 1960 havia exatamente 105.135 habitantes.
Embora sem dinheiro, estávamos satisfeitos porque era véspera de carnaval, e se tivéssemos um pouco mais de sorte, no dia seguinte pela manhã cedo já estaríamos em Recife, em plena folia do frevo e do carnaval!
Motociclistas do local que estavam reunidos numa Praça, assim que nos viram logo vieram até nós apertando nossas mãos e exaltando nossa coragem pelo fato de irmos de moto do Rio até lá e ainda esticarmos até Recife. Era uma loucura de nossa parte, diziam todos (e olha que da missa eles ainda não sabiam da metade. Nem nós dois também).
Essa recepção foi para nós extremamente providencial e logo a seguir mostrarei a razão. Mas adianto que aí nesse local eu e o Fernando não tínhamos mais dinheiro, onde dormir e nem o que comer.
Precisávamos arranjar um lugar para ficar sem pagar, pelo fato de já estarmos sem dinheiro. Mas para não nos diminuirmos frente à turma, o Fernando que tinha maiores habilidades, dando uma de “João sem braço”, falou: Será que um de vocês poderia indicar um lugar onde pudéssemos passar a noite? Acontece que vamos ter de ficar por aqui porque, além da moto não ter luz, esta noite não tem luar, o que nos dificulta prosseguir viagem.
Mais que depressa um dos rapazes grita. Vamos lá para casa!
Ouvindo isso, nossa vontade era gritar... Vamos!!! Mas “para não entregar o jogo”, fizemos uma pausa e dissemos: Ora, o que é isso, na sua casa incomodando a todos? Então ele e outro rapaz, responderam: Podem ir lá para nossa casa porque nós dois (eram irmãos) daqui já vamos para o pré-carnavalesco que vai ter no Clube da cidade e só vamos voltar amanhã pela manhã, de forma que vocês podem usar nossas camas, o banheiro e o que mais quiserem. E continuaram: Vamos até lá agora mesmo para apresentá-los aos nossos pais.
E assim partimos para a casa deles. Eu e o Fernando na moto e eles dois numa Vespa.
O caro leitor certamente estará pensando: “Esses dois aventureiros eram malucos, não tem dúvida. Porém estes dois rapazes da Vespa precisariam ser internados imediatamente num Sanatório”, por levarem para casa, dois desconhecidos. Entretanto, aqui vai uma explicação: Se levarmos em consideração o atual momento de violências, o caro leitor terá toda razão. Acontece porém, que naquela época os tempos eram outros e sobre isto até existe uma conhecida expressão popular: “Do tempo em que se amarrava cachorro com linguiça”. Mas, por consequência da crescente violência que deseduca e embrutece até pessoas bondosas, a confiança deu lugar à desconfiança e ao medo. Coisa que lamento, pois naquele tempo vivíamos bem melhor pelo fato das pessoas acreditarem mais umas nas outras. Razão, portanto, de terem-nos oferecido acolhida.
Bom, continuando a narrativa chegamos à casa, apresentaram-nos aos seus pais, que nos receberam educadamente e foram logo fazendo perguntas sobre a viagem, querendo saber novidades do Rio, e se estávamos bem. Conversamos um pouco e a seguir disseram para comermos alguma coisa, o que fizemos imediatamente após tomarmos banho, pois estávamos sujos e famintos.
Os rapazes, que já haviam saído com destino ao baile pré-carnavalesco (era realmente véspera de carnaval), confirmando o expressado na noite anterior, só voltaram pela manhã quando estávamos todos tomando um lauto café. A mesa do café além de farta era saborosa, aproveitando por isso para comermos o máximo, tendo em vista não sabermos quando e onde iríamos comer novamente. Mas isso era coisa que não importava. Pois enquanto se é jovem, tudo é festa, tudo se consegue!
28 de fevereiro, domingo, 1º Dia de carnaval - Caruaru-PE 15º Dia Tudo arrumado, moto em dia, agradecemos a hospitalidade e o carinho a nós dispensado pelos rapazes e pelo dono da casa, Sr.Miguel, principalmente pela confiança que em nós depositaram, permitindo que dois viajantes desconhecidos passassem a noite dentro da casa.
08:00h. Mal pegamos estrada e o carburador começou a disparar (ainda bem que não estava chovendo). Paramos na estrada e ali mesmo abrimos e o limpamos como das outras vezes. Pelo que me lembro consistia em desconectar o cabo do acelerador, que saía do lado direito do guidão e ia até a parte superior do carburador; soltar o tubo da gasolina que saía do tanque, mas antes tínhamos de fechar a torneirnha; tirar duas porcas; tirar o carburador e a respectiva junta que nos cabeçotes; abrir a parte superior do carburador (tampa rosqueada onde entrava o cabo que movimentava um tipo de pistãozinho que dosava entrada ar/gasolina). Esse tal pistãozinho prendia, talvez devido aos respingos de lama levantados no ar e aspirados pelo carburador que estava sem o filtro de ar. Então, essa lama respingada e que era aspirada, sedimentava-se na parede do pistaõzinho até prenderem-no (devido à pressão, a molinha não tinha força suficiente para baixá-lo) e o motor ficava acelerado devido à entrada de muita gasolina. Isso era perigoso porque, quando ele prendia em cima e o motor disparava, se não apertasse imediatamente a embreagem, a moto seguia em alta aceleração.
Quando acabamos de limpar e de recolocar o carburador no lugar, já eram 10:00h.
Reiniciamos então a jornada naquela estrada de piso terrível, passando por uma localidade chamada Ponte Nova. E mais adiante, adivinhem... o que foi que aconteceu? Exatamente! O pneu traseiro furou novamente. Paramos para consertá-lo e aproveitamos a oportunidade para colocar no lugar o novo “manchão” arranjado em Arcoverde.
Para frente, então, aos “trancos e barrancos”, chegamos em Vitória de Santo Antão. Continuando, mais adiante numa cidade chamada Moreno, havia na estrada uma cancela onde começava o asfalto. Paramos para saber do que se tratava e o fiscal que ali estava disse-nos que para atravessar, todos os veículos pagam pedágio para compensar o gasto na confecção e conservação do asfalto feito num trecho de aproximadamente 10 km. Eu receberia um “passe” e o entregaria quando chegasse na outra cancela, não muito distante, em Jaboatão.
Para início de conversa, estávamos sem dinheiro. Não tínhamos nem para o cafezinho. Havia acabado tudo.
Que situação, pertinho de Recife e não poder lá chegar por causa desse tal de pedágio, que na época eu nem sabia do que se tratava? Isso não existe, pensei comigo mesmo. O que fazer???
João Cruz